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RECEBENDO ASSISTÊNCIA
- É
você o tutelado de Clarêncio?
A
pergunta vinha de um jovem de singular e doce expressão.
Grande
bolsa pendente da mão, como quem conduzia apetrechos de assistência,
endereçava-me ele sorriso acolhedor. Ao meu sinal afirmativo, mostrou-se à
vontade e, maneiras fraternas, acentuou:
- Sou
Lísias, seu irmão. Meu diretor, o assistente Henrique de Luna, designou-me para
servi-lo, enquanto precisar tratamento.
- É
enfermeiro? - indaguei.
- Sou
visitador dos serviços de saúde. Nessa qualidade, não só coopero na enfermagem,
como também assinalo necessidades de socorro, ou providências que se refiram a
enfermos recém-chegados.
Notando-me
a surpresa, explicou:
- Nas
minhas condições há numerosos servidores em "Nosso Lar". O amigo
ingressou agora na colônia e, naturalmente, ignora a amplitude dos nossos
trabalhos. Para fazer uma idéia, basta lembrar que apenas aqui, na seção em que
se encontra, existem mais de mil doentes espirituais, e note que este é um dos
menores edifícios do nosso parque hospitalar.
- Tudo
isso é maravilhoso! - exclamei.
Adivinhando
que minhas observações iam descambar para o elogio espontâneo, Lísias
levantou-se da poltrona a que se recolhera e começou a auscultar-me, atento,
impedindo-me o agradecimento verbal.
- A
zona dos seus intestinos apresenta lesões sérias com vestígios muito exatos do
câncer; a região do fígado revela dilacerações; a dos rins demonstra característicos
de esgotamento prematuro.
Sorrindo,
bondoso, acrescentou:
- Sabe
o irmão o que significa isso?
- Sim -
repliquei , o médico esclareceu ontem, explicando que devo esses distúrbios a
mim mesmo...
Reconhecendo
o acanhamento da confissão reticenciosa, apressou-se a consolar:
- Na
turma de oitenta enfermos a que devo assistência diária, cinquenta e sete se
encontram nas suas condições. E talvez ignore que existem, por aqui, os
mutilados. Já pensou nisso? Sabe que o homem imprevidente, que gastou os olhos
no mal, aqui comparece de órbitas vazias? Que o malfeitor, interessado em
utilizar o dom da locomoção fácil nos atos criminosos, experimenta a desolação
da paralisia, quando não é recolhido absolutamente sem pernas? Que os pobres
obsidiados nas aberrações sexuais costumam chegar em extrema loucura?
Identificando-me
a perplexidade natural, prosseguiu:
-
"Nosso Lar" não é estância de espíritos propriamente vitoriosos, se conferirmos
ao termo sua razoável acepção. Somos felizes, porque temos trabalho; e a alegria
habita cada recanto da colônia, porque o Senhor não nos retirou o pão abençoado
do serviço.
Aproveitando
a pausa mais longa, exclamei sensibilizado:
-
Continue, meu amigo, esclareça-me. Sinto-me aliviado e tranquilo.
Não
será esta região um departamento celestial dos eleitos?
Lísias
sorriu e explicou:
-
Recordemos o antigo ensinamento que se refere a muitos chamados e poucos
escolhidos na Terra.
E
vagueando o olhar no horizonte longínquo, como a fixar experiências de si mesmo
no painel das recordações mais íntimas, acentuou:
- As
religiões, no planeta, convocam as criaturas ao banquete celestial. Em sã
consciência, ninguém que se tenha aproximado, um dia, da noção de Deus, pode
alegar ignorância nesse particular. Incontável é o número dos chamados, meu
amigo; mas, onde os que atendem ao chamado? Com raras exceções, a massa humana
prefere aceder a outro gênero de convites. Gasta-se a possibilidade nos desvios
do bem, agrava-se o capricho de cada um, elimina-se o corpo físico a golpes de
irreflexão. Resultado: milhares de criaturas retiram-se diariamente da esfera
da carne em doloroso estado de incompreensão. Multidões sem conto erram em todas
as direções nos círculos imediatos à crosta planetária, constituídas de loucos,
doentes e ignorantes.
Notando-me
a admiração, interrogou:
-
Acreditaria, porventura, que a morte do corpo nos conduziria a planos de
milagres? Somos compelidos a trabalho áspero, a serviços pesados e não basta
isso. Se temos débitos no planeta, por mais alto que ascendamos, é imprescindível
voltar, para retificar, lavando o rosto no suor do mundo, desatando algemas de
ódio e substituindo-as por laços sagrados de amor. Não seria justo impor a
outrem a tarefa de mondar o campo que semeamos de espinhos, com as próprias mãos.
Abanando
a cabeça, acrescentava:
- Caso
dos muitos chamados, meu caro. O Senhor não esquece homem algum; todavia,
raríssimos homens o recordam.
Acabrunhado
com a lembrança dos próprios erros, diante de tão grandes noções de
responsabilidade individual, objetei:
- Como
fui perverso!
Contudo,
antes que me alongasse noutras exclamações, o visitador colocou a destra
carinhosa em meus lábios, murmurando:
-
Cale-se! meditemos no trabalho a fazer. No arrependimento verdadeiro é preciso
saber falar, para construir de novo.
Em
seguida, aplicou-me passes magnéticos, atenciosamente. Fazendo os curativos na
zona intestinal, esclareceu:
- Não
observa o tratamento especializado da zona cancerosa? Pois note bem: toda
medicina honesta é serviço de amor, atividade de socorro justo; mas o trabalho
de cura é peculiar a cada espírito. Meu irmão será tratado carinhosamente,
sentir-se-á forte como nos tempos mais belos da sua juventude terrena,
trabalhará muito e, creio, será um dos melhores colaboradores em "Nosso
Lar"; entretanto, a causa dos seus males persistirá em si mesmo, até que
se desfaça dos germes de perversão da saúde divina, que agregou ao seu corpo
sutil pelo descuido moral e pelo desejo de gozar mais que os outros. A carne
terrestre, onde abusamos, é também o campo bendito onde conseguimos realizar
frutuosos labores de cura radical, quando permanecemos atentos ao dever justo.
Meditei
os conceitos, ponderei a bondade divina e, na exaltação da sensibilidade,
chorei copiosamente.
Lísias,
contudo, terminou o tratamento do dia, com serenidade, e falou:
-
Quando as lágrimas não se originam da revolta, sempre constituem remédio
depurador. Chore, meu amigo. Desabafe o coração. E abençoemos aquelas
beneméritas organizações microscópicas que são as células de carne na Terra.
Tão humildes e tão preciosas, tão detestadas e tão sublimes pelo espírito de
serviço. Sem elas, que nos oferecem templo à retificação, quantos milênios
gastaríamos na ignorância?
Assim
falando, afagou-me carinhosamente a fronte abatida e despediu-se com um ósculo
de amor.
Informações do capítulo:
Personagens: André Luiz, Lísias
Lísias, o visitador
dos serviços de saúde, assiste a André, aproveitando para esclarecê-lo a
respeito da humildade e do auxílio que recebemos do Alto.