AÇÃO E
REAÇÃO (FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER, DITADO PELO ESPÍRITO ANDRÉ LUIZ)
Capítulo
1
"Luz nas sombras"
(...)
Hilário e eu visitávamos a "Mansão Paz",
notável escola de reajuste de que Druso era o diretor abnegado e amigo.
O estabelecimento, situado nas regiões inferiores, era
bem uma espécie de "mosteiro São Bernardo", em zona castigada por
natureza hostil, com a diferença de que a neve, quase constante em torno do
célebre convento encravado nos desfiladeiros entre a Suíça e a Itália , era ali
substituída pela sombra espessa, que, naquela hora, se adensava, movimentada e
terrível, ao redor da instituição, como se tocada por ventania incessante.
O pouso acolhedor, que permanece sob a jurisdição de
"Nosso Lar" (Cidade espiritual na Esfera Superior. - Nota do Autor
espiritual), está fundado há mais de três séculos, dedicando-se a receber
Espíritos infelizes ou enfermos, decididos a trabalhar pela própria
regeneração, criaturas essas que se elevam a colônias de aprimoramento na Vida
Superior ou que retornam à esfera dos homens para a reencarnação retificadora.
Em razão disso, o casario enorme, semelhante a vasta
cidadela instalada com todos os recursos de segurança e defesa, mantém setores
de assistência e cursos de instrução, nos quais médicos e sacerdotes,
enfermeiros e professores encontram, depois da morte terrestre, aprendizados e
que fazeres da mais elevada importância.
Pretendíamos efetuar algumas observações, com
referência às leis de causa e efeito-o carma dos hindus e, convenientemente
recomendados pelo Ministério do Auxílio, achávamo-nos ali, encantados com a
palavra do orientador, que prosseguia, atencioso, após longa pausa.
A conversação fascinava-nos.
(...)
Enquanto nos entendíamos, reparávamos lá fora, através
do material transparente de larga janela, a convulsão da Natureza.
Ventania ululante, carregando consigo uma substância
escura, semelhante à lama aeriforme, remoinhava com violência, em torvelinho
estranho, à maneira de treva encachoeirada...
E do corpo monstruoso do turbilhão terrível rostos
humanos surdiam em esgares de horror, vociferando maldições e gemidos.
Apareciam de relance, jungidos uns aos outros como
vastas correntes de criaturas agarradas entre si, em hora de perigo, na ânsia
instintiva de dominar e sobreviver.
Druso, tanto quanto nós, contemplou o triste quadro
com visível piedade a marear-lhe o semblante.
Fixou-nos em silêncio como a chamar-nos para a
reflexão. Parecia dizer-nos quanto lhe doía o trabalho naquela paragem de
sofrimento, quando Hilário interrogou:
- Por que não descerrar as portas aos que gritam lá
fora? Não é este um posto de salvação?
- Sim - respondeu o Instrutor, sensibilizado -, mas a
salvação só é realmente importante para aqueles que desejam salvar-se.
E, depois de pequeno intervalo, continuou:
- Para cá do túmulo, a surpresa para mim mais dolorosa
foi essa, o encontro com feras humanas, que habitavam o templo da carne, à
feição de pessoas comuns. Se acolhidas aqui, sem a necessária preparação, atacar-nos-iam de pronto, arrasando-nos o
instituto de assistência pacífica. E não podemos esquecer que a ordem é a base
da caridade.
Apesar da explicação firme e serena, concentrava-se
Druso no painel exterior, tal a compaixão a desenhar-se-lhe na face.
Logo após, recompondo a expressão fisionômica, o
Instrutor aduziu:
- Somos hoje defrontados por grande tempestade
magnética, e muitos caminheiros das regiões inferiores são arrebatados pelo
furacão como folhas secas no vendaval.
- E guardam consciência disso? - indagou Hilário,
perplexo.
- Raros deles. As criaturas que se mantêm assim
desabrigadas, depois do túmulo, são aquelas que não se acomodam com o refúgio
moral de qualquer princípio nobre.
Trazem o íntimo turbilhonado e tenebroso, qual a
própria tormenta, em razão dos pensamentos desgovernados e cruéis de que se
nutrem.
Odeiam e aniquilam, mordem e ferem. Alojá-los, de
imediato, nos santuários de socorro aqui estabelecidos, será o mesmo que asilar
tigres desarvorados entre fiéis que oram num templo.
- Mas conservam-se, interminavelmente, nesse terrível
desajuste? - insistiu meu companheiro agoniado.
O orientador tentou sorrir e respondeu:
- Isso não. Semelhante face de inconsciência e
desvario passa também como a tempestade, embora a crise, por vezes, persevere
por muitos anos. Batida pelo temporal das provações que lhe impõem a dor de
fora para dentro, refunde-se a alma, pouco a pouco, tranqüilizando-se para
abraçar, por fim, as responsabilidades que criou para si mesma.
- Quer dizer, então - disse por minha vez -, que não
basta a romagem de purgação do Espírito depois da morte, nos lugares de treva e
padecimento, para que os débitos da consciência sejam ressarcidos...
- Perfeitamente - aclarou o amigo, atalhando-me a
consideração reticenciosa -, o desespero vale por demência a que as almas se
atiram nas explosões de incontinência e revolta. Não serve como pagamento nos
tribunais divinos. Não é razoável que o devedor solucione com gritos e
impropérios os compromissos que contraiu mobilizando a própria vontade. Aliás,
dos desmandos de ordem mental a que nos entregamos, desprevenidos, emergimos
sempre mais infelizes, por mais endividados.
Cessada a febre de loucura e rebelião, o Espírito
culpado volve ao remorso e à penitência. Acalma-se como a terra que torna à
serenidade e à paciência, depois de insultada pelo terremoto, não obstante
amarfanhada e ferida. Então, como o solo que regressa ao serviço da plantação
proveitosa, submete-se de novo à sementeira renovadora dos seus destinos.
Atormentada expectação baixara sobre nós, quando
Hilário considerou:
- Ah! se as almas encarnadas pudessem morrer no corpo,
alguns dias por ano, não à maneira do sono físico em que se refazem, mas com
plena consciência da vida que as espera!...
- Sim - ajuntou o orientador -, isso realmente
modificaria a face moral do mundo; entretanto, a existência humana, por mais
longa, é simples aprendizado em que o Espírito reclama benéficas restrições
para restaurar o seu caminho. Usando nova máquina fisiológica entre os
semelhantes, deve atender à renovação que lhe diz respeito e isso exige a
centralização de suas forças mentais na experiência terrena a que transitoriamente
se afeiçoa.
A palavra fluente e sábia do Instrutor era para nós
motivo de singular encantamento, e, porque me supunha no dever de aproveitar os
minutos, ponderava em silêncio, de mim para comigo, quanto à qualidade das
almas desencarnadas que sofriam a pressão da tormenta exterior.
Druso percebeu-me a indagação mental e sorriu, como a
esperar por minha pergunta clara e positiva.
Instado pela força de seu olhar, observei, respeitoso:
- Diante do espetáculo penoso a que nos é dado
assistir, somos naturalmente constrangidos a pensar na procedência dos que
experimentam o mergulho nesse torvelinho de horror... São delinquentes comuns
ou criminosos acusados de grandes faltas?
Encontraríamos por aí seres primitivos como os nossos
indígenas por exemplo?
A resposta do amigo não se fez esperar.
- Tais inquirições - disse ele -, quando de minha
vinda para cá, me assomaram igualmente à cabeça. Há cinquenta anos sucessivos
estou neste refúgio de socorro, oração e esperança. Penetrei os umbrais desta
casa como enfermo grave, após o desligamento do corpo terrestre. Encontrei aqui
um hospital e uma escola. Amparado, passei a estudar minha nova situação,
anelando servir. Fui padioleiro, cooperador da limpeza, enfermeiro, professor,
magnetizador, até que, de alguns anos para cá, recebi jubilosamente o encargo
de orientar a instituição, sob o comando positivo dos instrutores que nos
dirigem. Obrigado a pacientes e laboriosas investigações, por força de meus
deveres, posso adiantar-lhes que às densas trevas em torno somente aportam as
consciências que se entenebreceram nos crimes deliberados, apagando a luz do
equilíbrio em si mesmas. Nestas regiões inferiores não transitam as almas
simples, em qualquer aflição purgativa, situadas que se encontram nos erros
naturais das experiências primárias. Cada ser está jungido, por impositivos da
atração magnética, ao círculo de evolução que lhe é próprio. Os selvagens, em
grande maioria, até que se lhes desenvolva o mundo mental, vivem quase sempre
confinados a floresta que lhes resume os interesses e os sonhos, retirando-se
vagarosamente do seu campo tribal, sob a direção dos Espíritos benevolentes e
sábios que os assistem; e as almas notoriamente primitivas, em grande parte,
caminham ao influxo dos gênios beneméritos que as sustentam e inspiram,
laborando com sacrifício nas bases da instituição social e aproveitando os
erros, filhos das boas intenções, à maneira de ensinamentos preciosos que
garantem a educação dessas almas. Asseguro-lhes, assim, que, nas zonas
infernais propriamente ditas, apenas residem aquelas mentes que, conhecendo as
responsabilidades morais que lhes competiam, delas se ausentaram,
deliberadamente, com o louco propósito de ludibriarem o próprio Deus. O
inferno, a rigor, pode ser, desse modo, definido como vasto campo de
desequilíbrio, estabelecido pela maldade calculada, nascido da cegueira
voluntária e da perversidade completa. Aí vivem domiciliados, às vezes por
séculos, Espíritos que se bestializaram, fixos que se acham na crueldade e no
egocentrismo. Constituindo, porém, larga província vibratória, em conexão com a
humanidade terrestre, de vez que todos os padecimentos infernais são criações
dela mesma, estes lugares tristes funcionam como crivos necessários para todos
os Espíritos que escorregam nas deserções de ordem geral, menosprezando as responsabilidades
que o Senhor lhes outorga. Dessa forma, todas as almas já investidas no
conhecimento da verdade e da justiça e por isso mesmo responsáveis pela
edificação do bem, e que, na Terra, resvalam nesse ou naquele delito,
desatentas para com o dever nobilitante que o mundo lhes assinala, depois da
morte do corpo estagiam nestes sítios por dias, meses ou anos, reconsiderando
as suas atitudes, antes da reencarnação que lhes compete abraçar, para o
reajustamento tão breve quanto possível.
- Desse modo...
Dispunha-se Hilário a ensaiar conclusões, mas Druso,
apreendendo-lhe a ideia, atalhou, sintetizando:
- Desse modo, os gênios infernais que supõem governar
esta região, com poder infalível, aqui vivem por tempo indeterminado. As
criaturas perversas que com eles se afinam, embora lhes padeçam a dominação,
aqui se deixam prender por largos anos. E as almas transviadas na delinquência
e no vício, com possibilidades de próxima recuperação, aqui permanecem em
estágios ligeiros ou regulares, aprendendo que o preço das paixões é demasiado
terrível. Para as criaturas desencarnadas desse último tipo, que passam a
sofrer o arrependimento e o remorso, a dilaceração e a dor, apesar de não
totalmente livres das complexidades escuras com que se arrojaram às trevas, as casas
de fraternidade e assistência como esta funcionam, ativas e diligentes,
acolhendo-as quanto possível e habilitando-as para o retorno às experiências de
natureza expiatória na carne.
Lembrava-me do tempo em que perlustrara, por minha
vez, semiconsciente e conturbado, os trilhos da sombra, quando de meu
desligamento do veículo físico, confrontando meus próprios estados mentais do
passado e do presente, quando o orientador prosseguiu:
- Segundo é fácil reconhecer, se a treva é a moldura
que imprime destaque à luz, o inferno, como região de sofrimento e desarmonia,
é perfeitamente cabível, representando um estabelecimento justo de filtragem do
Espírito, a caminho da Vida Superior. Todos os lugares infernais surgem, vivem
e desaparecem com a aprovação do Senhor, que tolera semelhantes criações das
almas humanas, como um pai que suporta as chagas adquiridas pelos seus filhos e
que se vale delas para ajudá-los a valorizar a saúde. As Inteligências
consagradas à rebeldia e à criminalidade, em razão disso, não obstante
admitirem que trabalham para si, permanecem a serviço do Senhor, que corrige o
mal com o próprio mal.
Por esse motivo, tudo na vida é movimentação para a
vitória do bem supremo.
Druso quis prosseguir, mas invisível campainha vibrou
no ar e, mostrando-se alertado pela imposição das horas, levantou-se e
disse-nos simplesmente:
- Amigos, chegou o instante de nossa conversação com
os internados que já se revelam pacificados e lúcidos. Dedicamos algumas horas,
duas vezes por semana, a semelhante mister.
Erguemo-nos sem divergir e acompanhamo-lo,
prestamente.
Questões para estudo:
1. Qual era a finalidade da instituição em que se
encontravam os personagens desse relato?
2. Por que alguns dos espíritos sofredores que eram
observados não podiam ser ajudados?
3. O que o instrutor quis dizer com: "a ordem é a
base da caridade"?
4. Qual a razão desses espíritos encontrarem-se nessa
situação?
5. Como o espírito pode livrar-se dessas provações?
6. Que tipo ou classe de espíritos habitam essas
regiões? Explique porque os selvagens não fazem parte dessa classe de
espíritos?
7. O que significa o "inferno" nas palavras
do instrutor e qual sua função?
8. Por que Deus permite que existam esses lugares de
tanto sofrimento?
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