segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Desidentificação

Podemos considerar a personalidade humana constituída de essência e substância. A primeira são as energias que procedem do Eu profundo, as vibrações que dimanam da sua causalidade, e a segunda é a reunião dos conteúdos psíquicos, transformados em atos, experiências, realizações, decorrentes do ambiente, das circunstâncias, e reminiscências das existências passadas.
São as substâncias que respondem pelo comportamento do ser, propiciando-lhe liberdade ou escravidão e dando nascimento ao eu.
Numa pessoa média, portadora de consciência, sem a nobre conquista do discernimento e da vivência compatível, a ilusão e os engodos se estruturam, passando à posição das realidades únicas, que ignoram, por efeito, a legítima Realidade.
Essa deturpação psicológica proporcionada pelo ego, que se entorpece e se engana, contribui para as experiências utópicas e alienadoras, que lhe alteram a conduta, produzindo estados profundamente perturbadores.
O hábito e o cultivo dos pensamentos viciosos, de qualquer natureza, tornam-se as substâncias que formam a personalidade doentia, que se adapta aos fatores dissolventes, rompendo a linha do equilíbrio e do discernimento, empurrando para o trânsito pela senda da irrealidade.
Sem dúvida, a pessoa portadora de substâncias fragmentadoras move-se em um verdadeiro nevoeiro, que é mais compacto ou mais sutil, conforme as fixações, os vícios a que se aferra. Identificando-se com as ideias que lhe são convenientes — algumas de procedência psicopatológica — adapta-se-lhes e incorpora-as, deformando a personalidade, e esta irrealidade termina por afetar-lhe a individualidade, caso não se resolva pela psicoterapia específica e urgente.
Expressam-se essas identificações nas áreas fisiológicas — como sensações — e psicológica — como emoções.
Toda vez que a pessoa tenta a conscientização íntima, o encontro com o Eu profundo, a busca interior, as sensações predominantes nas paisagens físicas perturbam-lhe a decisão, impedindo a experiência. São sensações visuais, gustativas, olfativas, auditivas, tácteis, com as quais convive em regime de escravidão, e que assomam no silêncio, na concentração, ocupando o espaço mental, desviando a atenção da meta que busca.
São ruídos externos que, em outras circunstâncias, não são percebidos; imagens visuais arquivadas, aparentemente esquecidas; olfação excitada, que provoca o apetite; coceiras e comichões que surgem, simultâneos, em várias partes do corpo; salivação e desejo de alimentar-se, tomando os centros de interesse e desviando-os da finalidade libertadora.
Por outro lado, nos tentames do silêncio interior para reequilíbrio da personalidade, as sensações produzem associações de ideias que levam a evocações insensatas.
Música e perfume retornam à sensibilidade orgânica e induzem a recordações atribuladoras, com lamentáveis anseios de repeti-las e frui-las novamente.
A mente viciada e o corpo acomodado dificultam o despertar da consciência para a lucidez.
A atividade de desidentificação, por isso mesmo, torna-se urgente. Mediante a mudança dos hábitos mentais, do cultivo das ideias — substituindo as perturbadoras por outras saudáveis, já que todo espaço deve ser preenchido — do exercício disciplinado dos pensamentos, passando à alteração dos prazeres e gozos ilusórios que devem ceder lugar àqueles que se expressam como manifestação da Realidade plenificadora, ocorrerá a libertação dos vícios e fixações, desidentificando-se da conduta tormentosa.
Como envoltórios concêntricos que asfixiam as irradiações do Eu real, as identificações deverão ser liberadas de dentro para fora, portanto, da essência para a substância.
A medida que a consciência se desenovela dos impedimentos psíquicos, mais amplas descobertas são logradas nas áreas das identificações, que passam a ser diluídas, permitindo-a fulgir qual estrela poderosa no velário da noite transparente.
A consciência desidentificada com a personalidade fragmentada, enfermiça, proporciona bem-estar.
Essa conquista, a da consciência plena, faculta alegria. Como consequência, o silêncio interior consciente, responsável pela saúde psíquica e emocional, predispõe o ser ao crescimento das aspirações e ao esforço dos ideais de enobrecimento.
Nessa fase de desidentificação e lucidez plena, a consciência predispõe-se à conquista do estágio mais elevado, pelo menos na área humana, que é a sua harmonização total com a de natureza Cósmica.

Libertação dos conteúdos negativos

Graças ao atavismo predominante em sua natureza, o homem guarda as primeiras expressões da consciência em nível inferior, no qual confunde o eu com o objeto, e a sua é somente uma percepção sensorial.
A identificação com o próprio corpo propicia-lhe uma consciência orgânica, deformada, de que se libera a pouco e pouco, avançando para a transferência desse conteúdo para outro nível de discernimento e direcionamento.
No processo de evolução, porque estagia nas faixas do instinto que o submete, vai adquirindo outros valores, sem desidentificar-se dos conteúdos fixados, em razão dos quais a marcha se lhe torna muito lenta.
A consciência individual, representando a Cósmica, a princípio parece deslocada e diferenciada. No entanto, o Deus em nós do conceito evangélico reflete-se nessa percepção embrionária, que se desenvolverá na sucessão das experiências até liberar-se e alcançar a totalidade.
De forma penosa, não raro, a libertação dos conteúdos negativos — paixões dissolventes, apegos, ilusões, sentimentos inferiores — faculta os anseios pelas conquistas de outros níveis, nos quais o bem-estar e a paz formam os novos hábitos, a nova natureza do ser.
A Psicologia tradicional, considerando patológicos os níveis superiores, define cada um deles com nomenclatura especial, por desinteresse de penetrar nos estados alterados da consciência, que levariam à constatação do ser preexistente ao corpo como sobrevivente à morte.
No nível de consciência inferior, os estados alterados demonstram que muitos desses conteúdos negativos, emergentes e predominantes, procedem das reencarnações passadas, não foram liberados, nem conseguiram diluir-se através das ações enobrecedoras.
Todos os conteúdos primitivos provêm de realizações e fixações sempre anteriores, que somente as disciplinas do esforço, da concentração, da meditação para a ação, conseguem libertar.
Em razão disso, a meditação é uma terapia valiosa para superar os conteúdos negativos, com o objetivo de liberar o inconsciente, ao invés de esmagá-lo ou asfixiá-lo, e, longe, ainda, de o conscientizar, gerar novas formulações e identificações atuais que, no futuro, assomarão como recursos elevados.
Todos os formuladores da consciência superior são unânimes, seja no orientalismo ou na Psicologia Transpessoal, em recorrer à terapia da meditação, que faculta o autoconhecimento, preenche os vazios causados pela insatisfação, anula o eu corporal — rico das necessidades dos sentidos — para despertar os ideais subjetivos, as transferências metafísicas.
No nível de consciência superior, o eu deixa de ser mais eu, para ser uma síntese e vibrar em harmonia com o Todo.
Desaparece a fragmentação da Unidade e o equilíbrio transpessoal sincroniza com a Consciência Universal.
A característica fundamental do nível inferior, portanto, da prevalência dos conteúdos negativos, é a fragilidade do Eu profundo ante as exigências do ego atormentado, gerando projeções da sombra e desarticulando os projetos de paz.
A Psicologia espírita, por sua vez, cuidando do homem integral, distingue também nos conteúdos psíquicos, negativos, a ingerência de mentes desencarnadas obsessoras, que se comprazem no intercâmbio perturbador, propiciando desconforto e aflição em desforços cruéis, mediante alienações de variados cursos.
Ao mesmo tempo, seres outros desencarnados, invejosos quão infelizes, vinculados às criaturas humanas por afetividade mórbida ou despeito cruento, estabelecem fenômenos de hipnose que retardam o desenvolvimento da consciência daqueles que lhes experimentam o cerco.
Na psicoterapia espírita, o conhecimento da sobrevivência e do inter-relacionamento entre os seres das duas esferas — física e espiritual — oferece processos liberativos centrados sempre na transformação moral do paciente, sua renovação interior e suas ações edificantes, que facultam o discernimento entre o bem e o mal, propiciando a transferência para o nível superior, no qual se torna inacessível à indução perversa.
A meditação, a busca interna, nessa fase, são relevantes e cientificamente basilares para o processo de crescimento, de discernimento, de lucidez.
O homem avança no rumo da sua destinação, a passo vagaroso nos primeiros níveis de consciência, por desinteresse, ignorância, apressando a marcha na razão direta em que vence tais patamares e descobre a excelência das conquistas com que se enriquece.
A libertação dos conteúdos negativos é inevitável; no entanto, vários fenômenos patológicos e preferências emocionais, perturbadoras, interferem para que sejam mantidos, sendo necessário que os psicoterapeutas vigilantes insistam junto a esses pacientes em que se descubram e encontrem os benefícios dos níveis superiores.
Libertação é felicidade, e consciência enriquecida pelos conteúdos superiores significa plenitude, reino dos céus, mesmo durante o trânsito terrestre.


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