NONA PARTE
A FELICIDADE
Prazer e gozo
O sentido, o significado da vida centra-se na busca e
no encontro da felicidade. Constitui o mais frequente desafio existencial
responsável pelas contínuas realizações humanas. A felicidade, por isso,
torna-se difícil de ser lograda e, não raro, muito complexa, diferindo de
conteúdo entre as pessoas em si mesmas e os grupos sociais. Confundida com o
prazer, descaracteriza-se, fazendo-se frustrante e atormentadora.
A visão da felicidade é sempre distorcida, levando o
indivíduo a considerar que, quando não se encontra feliz, algo não está bem, o
que é uma conclusão incorreta.
O sonho humano da felicidade é róseo, assinalado pelo
conforto, o ócio e o poder, graças aos quais se desfrutaria de bem-estar e
gozo, inadvertidamente considerados o seu logro.
Certamente as pessoas ricas dispõem, em quantidade, de
horas assim vividas, sem que se hajam considerado felizes, mas antes se
encontrado tediosas, e o tédio é, sem dúvida, um dos seus grandes opostos, em
cujo bojo fermentam muitas desgraças.
A felicidade se expressa mediante vários requisitos,
entre outros, os de natureza cultural, atavismo que lega ao indivíduo o meio social
de onde se origina e no qual se encontra, de nível de consciência e de
maturidade psicológica.
Esses fatores estabelecem as diferenças de qualidade
do que é ser feliz, face às variações que impõem nos grupos e nos seres
humanos, demonstrando que as aspirações de uns nem sempre correspondem às de
outros.
O nível de consciência e o amadurecimento psicológico
estabelecem os graus nos quais se expressa, as realizações plenificadoras, os
estados de felicidade.
Perseguindo-se o gozo, o prazer, experimenta-se
alegria toda vez que são alcançados, assinalando-se esses momentos como de
felicidade que, no entanto, não correspondem ao sentido profundo, de magnitude
que ela reveste.
A interpretação equivocada conduz a buscas irreais,
que perdem o significado quando se alteram os fatores que a constituem. A sua
visão, em determinada época da existência, muda completamente em outro período.
A imaturidade psicológica de uma fase, a juvenil, por
exemplo, predispõe a uma aspiração de felicidade que, conseguida, logo desaparece,
e observada mais tarde apresenta-se desagradável, perturbadora. Por essa razão,
é necessário que se entenda que a felicidade tem a ver com o que o indivíduo é e
com o que ele pensa ser. A diferença, entre o que supõe ser e a sua realidade,
dimensiona o seu quadro de desejos, de prazeres e gozos que interpreta como a
busca plenificadora da felicidade.
Assim, a felicidade tem a ver com a identificação do
indivíduo com os seus sentidos e sensações, os seus sentimentos e emoções, ou
as suas mais elevadas aspirações idealistas, culturais, artísticas, religiosas,
com a verdade.
Na fase dos sentidos, o gozo se transforma depois de fruído
em insatisfação, ansiedade ou depressão; no período dos sentimentos, o prazer derrapa
em paixões possessivas, que dão margem a tragédias e angústias logo estejam
saciados; no ciclo idealista, religioso, transcendental, a busca transpessoal
fomenta a autodescoberta, a auto realização, a autodoação, em serviços
desinteressados de libertação do ego e participação na vida, individual como
coletiva, dos seres, da vida, da Terra.
Essa busca é diferente da ambição de ser virtuoso, na
qual mascara o ego e apresenta-o, entregando-se a macerações que ocultam gozos
patológicos ou a narcisismos, em mecanismos de evasão da realidade para planos
egóicos, masoquistas-exibicionistas, com aparência de humildade e renúncia.
Quando reais, essas expressões de virtude são ignoradas pelo próprio candidato
em quem são naturais, sem os condimentos do prazer embutidos na fuga psicológica
que as falseiam.
Para que a identificação do indivíduo com a sua busca
de serviço seja legítima, há uma perfeita união com o self, de tal forma que
não haverá diferença entre dar e receber, amar e ser amado, viver e morrer...
Apressadamente, há quem afirme que a felicidade tem a
ver com o princípio freudiano do prazer, e que através desse comportamento se
poderiam satisfazer as necessidades e evitar a dor. Não obstante, a dor não
pode ser evitada. Considerá-la como um fenômeno natural do processo de
evolução, encarando-a como instrumento de promoção do ser em relação à vida,
eis uma forma eficaz de lograr a alegria, superando os seus mecanismos
desgastantes e as ocorrências degenerativas, que não compreendidos e aceitos
com equilíbrio conduzem à infelicidade.
Da mesma maneira, a felicidade não se radica na
satisfação de qualquer desejo do ego, porquanto, após satisfazê-lo,
manifesta-se com veemência, gerando ansiedade e desconforto.
Surge então a compreensão transpessoal da existência,
e o desejo egóico cede lugar à aspiração espiritual, a uma busca mais profunda,
desidentificada com os condicionamentos passados com pessoas e coisas.
Provavelmente, nessa busca surgirão o sofrimento, o desconforto, que irão
cedendo lugar à harmonia e ao bem-estar, a medida que se alcancem as bases
objetivadas da realização plenificadora. Lentamente desaparece a frustração da
vida cotidiana, alargando-se o campo do idealismo e da identificação com a deidade,
mediante afirmação religiosa ou, com o eu profundo, em manifestação psicológica.
A princípio, o caminho da busca se afigura escuro qual um túnel, cuja claridade
está distante, mas que se torna maior quanto mais se lhe acerca da saída. Essa
busca, qual ocorre com qualquer outra, é realizada com a mente, que deve
solucionar as dificuldades, à proporção que se apresentem, eliminando o
sofrimento perturbador, tratando-se de um contínuo e lúcido trabalho interno.
Na busca da felicidade são inevitáveis os estágios de
sofrimento e de prazer, por constituírem fenômenos da experiência humana, da realização
do self desidentificando-se do ego. O lamentável, nessa ocorrência, tem lugar
com o surgimento e instalação do tormentoso sentimento de culpa, que nega inconscientemente
ao indivíduo o direito de fruir a felicidade, ou mesmo o prazer, sem o estigma
do sofrimento. Para fugir-lhe à imposição, busca-se o oceano do gozo, afogando
ali os ideais mais altos na denominada opção realista, que entretanto consome
os sentimentos e perturba as emoções, saturando-os ou desbordando-os,
rebaixando-os ao nível das sensações.
Há um mecanismo castrador impeditivo da experiência do
prazer, que podemos considerar como sendo inibição. Além dele, a consciência de
culpa conspira contra a realização da felicidade.
Tão arraigada se encontra no ser humano, que toda vez
que as circunstâncias propiciam a presença do prazer — a pessoa crê não merecer desfrutá-lo — ou da felicidade — o
indivíduo receia vivê-la, não se permitindo experienciá-la — surge o temor de que algo mau sucederá.
Para desarticular esse mecanismo conflitador, torna-se
necessária uma tomada de consciência de si mesmo, procurando descobrir a fonte
geradora da inibição, para a psicoterapia libertadora conveniente, que pode ter
origem na conduta infantil —
educação coercitiva, meio social asfixiante, família dominadora — ou proceder de reencarnações passadas — uso incorreto do livre arbítrio, conduta irregular,
exagero de paixões. Tal inibição, associada ao sentimento de culpa, castiga o
ser, impedindo-o de fruir momentos de recreação, de ócio, levando-o a tormentos
quando não se encontra produzindo algo concreto, o que se lhe torna uma
necessidade compulsiva, portanto patológica.
Certamente não se deve viver para a ociosidade
dourada, tampouco, exclusivamente, para a atividade estressante. Há todo um
rico arsenal desportivo, um infinito painel de belezas naturais convidativas,
um sem-número de estesias mediante a leitura, a arte, a conversação, um
abençoado campo de idealismo através da prece, da meditação, do controle da
mente, que se constituem tônicos revigorantes para as ações geradoras da
felicidade e dos quais todos podem e devem dispor quanto aprouver. Esses
interregnos nas atividades, enriquecidos de prazeres mais amplos, são estímulos
para a criatividade, a libertação de cargas psicológicas compressivas, a auto
realização.
Essa busca, do self profundo, deve superar e mesmo
arrebentar as resistências inibidoras, o sentimento de culpa, cujas energias
serão canalizadas para a conquista da felicidade.
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