Capítulo 16 - Débito aliviado
Em nossos
estudos da lei de causa e efeito, não nos esqueceremos de Adelino Correia, o
irmão da fraternidade pura.
Na véspera de
belo acontecimento que nos permitiremos narrar, visitamo-lo em companhia de
Silas, que no-lo apresentou nas atividades de um templo espírita-cristão.
Ouvimo-lo em
preciosos comentários do Evangelho, sob o influxo de iluminados instrutores, dos
quais assimilava as correntes mentais com a docilidade confiante de um homem
profundamente habituado à oração.
Falara com
mestria, arrancando-nos lágrimas pela emotividade com que nos tangia as fibras
mais íntimas. Singelamente trajado, denotava a condição do trabalhador em
experiências difíceis. Mas o estágio de prova a que parecia enredar-se era mais
amplo. Adelino revelava longa faixa de eczema na pele à mostra. Certa porção da
cabeça, os ouvidos e muitos pontos da face exibiam placas vermelhas, sobre as
quais se formavam diminutas vesículas de sangue, ao passo que as demais regiões
da epiderme surgiam gretadas, evidenciando uma afecção cutânea largamente
cronicificada. Além disso, acanhado e tristonho, indicava tormentos ocultos a lhe
dominarem a mente. Contudo, trazia nos olhos, maravilhosamente lúcidos, a marca
da humildade. Vários amigos espirituais assistiam-no, atentos.
Doce velhinha
desencarnada abeirou-se de nós e, demonstrando gozar da intimidade do
orientador de nossas excursões, falou-lhe, afetuosa:
– Assistente
amigo, venho rogar-lhe socorro em benefício da saúde de nosso Adelino. Noto-o
mais incomodado, ultimamente, pela dor das feridas não cicatrizadas...
– Sim, sim...
– respondeu Silas, cordialmente – o caso dele merece de todos nós especial
carinho.
– Porque pensa
ele nas necessidades dos outros, sem refletir nas necessidades próprias... –
acrescentou a anciã, comovida.
O assessor de
Druso prosseguiu, com carinho:
– Dois de
nossos médicos o vêm assistindo atenciosamente, quando se encontra ausente do
vaso físico por influência do sono.
E,
afagando-lhe a cabeça:
– Esteja
tranqüila. Correia, em breve, estará plenamente restaurado.
Os múltiplos
serviços da casa desdobravam-se, eficientes, e Adelino, dentro deles,
atraía-nos a atenção pela segurança espiritual com que se conduzia. Cercado
pelas vibrações radiantes dos seus pensamentos, centralizados no santo objetivo
do bem, afigurava-se-nos um companheiro vestido de luz.
Alguns
instantes após o afastamento da velhinha, apareceu-nos simpático rapaz,
igualmente já desenfaixado da matéria física, que, depois de saudar-nos, rogou,
reverente, ao nosso orientador:
– Peço vênia
para solicitar-lhe valioso obséquio...
– Fale sem
receio.
E o jovem
recém-chegado explicou, de olhos úmidos:
– Meu caro
Assistente, sei que o nosso Adelino vem atravessando certa crise financeira...
Pelo muito que auxilia os outros, descura-se das suas próprias necessidades.
Pelo amparo que ele oferece constantemente à minha pobre mãe encarnada, insisto
no apoio de sua amizade para que seja favorecido. Ainda na semana passada,
ouvindo as súplicas de minha genitora viúva, em grande penúria para atender ao
tratamento de dois dos meus manos enfermos, procurei-o, em lágrimas,
transmitindo-lhe apelos mentais para que nos protegesse e, sem qualquer
vacilação, acreditando obedecer aos seus impulsos, visitou-nos a casa,
entregando à minha sofredora mãezinha a importância de que necessitava... ó meu
Assistente, rogo-lhe por amor a Jesus!... Não deixe em dificuldade quem tanto
nos auxilia!...
Silas acolheu
a petição com risonha benevolência e disse:
– Descansemos.
Adelino permanece na rede de simpatia fraternal que teceu para o asilo de si
mesmo. Incumbem-se muitos amigos de supri-lo com os recursos indispensáveis ao
fiel desempenho da tarefa a que se dedicou. As circunstâncias na luta material harmonizar-se-ão
em favor dele, atendendo-lhe aos méritos conquistados.
Efetivamente,
o serviço espontâneo na afetuosa defesa do amigo que ali enxergávamos,
prestativo e confiante, era um tema de amizade e gratidão a estudar.
– Dir-se-ia –
observou Hilário, intrigado – que todos os tarefeiros, em trânsito nesta casa,
são devedores do irmão sob nossa vista...
– Sim – aprovou
Silas, paciente –, os créditos de Adelino são realmente enormes, não obstante
os débitos a que ainda está preso...
Cultiva, no
entanto, a ventura de substancializar a fé e o conhecimento superior que os
Mensageiros de Jesus lhe confiam em obras de genuíno amor fraternal, a lhe
granjearem larga soma de reconhecimento.
Logo após, o
mentor amigo recomendou-nos aproveitar os minutos em atuação fraternal, no
instituto evangélico em que nos abrigávamos, até que pudéssemos tomar contato
mais amplo com o servidor, cuja existência atual se desdobrava sob os auspícios
da Mansão que nos patrocinava os estudos.
Em face da
simpatia que Adelino despertava igualmente em nós, acercamo-nos dele, a fim de
ofertar-lhe, de algum modo, o contingente de nossas forças, na movimentação dos
passes magnéticos que passara agora a administrar, em favor de alguns enfermos.
Era curioso
pensar que nós mesmos, no primeiro encontro fortuito, nos sentíamos prontos a
partilhar-lhe as tarefas, tão somente atraídos por sua irradiante bondade. A
abnegação, em toda a parte, é sempre uma estrela sublime. Basta mostrar-se para
que todos gravitemos em torno de sua luz.
Findo o
serviço da noite, Silas e nós acompanhamo-lo ao reduto doméstico. Esperava-o,
no limiar, a genitora que, evidentemente, ultrapassava os sessenta de idade.
Silas deu-se pressa em no-la apresentar, explicando:
– É nossa irmã
Leontina, carinhosa mãe de Correia, mãe e amiga a tutelar-lhe a existência.
Reparando na
avançada madureza do amigo que nos tomava a atenção, meu colega indagou:
– Adelino não
é casado?
– Sim, nosso
irmão é casado, mas não conta com a presença da esposa.
A resposta
dava-nos a entender que o companheiro atravessava provas perante as quais nos
cabia respeitosa discrição.
E, enquanto
mãe e filho se entregavam a doce entendimento, Silas fez-nos penetrar em
aposento próximo.
Junto á porta
de entrada, alinhavam-se três leitos, ocupados por outras tantas criancinhas.
Loura menina
de seus nove a dez anos presumíveis, ao lado de dois petizes de escura tez,
recordava a Branca de Neve entre dois anões. Todos dormiam, placidamente.
Afagando a
boneca viva, o Assistente informou:
– Esta é
Marisa, a filhinha de Correia, de quem a mãezinha se distanciou em definitivo,
há seis anos.
Designando, em
seguida, os dois meninos de cor, aduziu:
– E estes
pequeninos são Mário e Raul, dois enjeitados que Adelino abraçou por filhos do
coração.
Hilário e eu,
adivinhando as aflições ocultas que decerto enxameavam na existência do chefe
da casa, silenciávamos, de propósito, em reverente expectativa. Entendendo-nos
a atitude, Silas passou a falar-nos mais longamente, aclarando:
– Para exaltar
o santificante esforço de um amigo, a fim de estudarmos juntos um processo de
dívida aliviada, permitimo-nos algo dizer em torno do passado recente do
companheiro que visitamos, agora empenhado ao labor do seu resgate.
Qual se
quisesse centralizar os recursos da memória, emudeceu por instantes e,
finalmente, continuou:
– Em meados do
século precedente, Adelino era filho bastardo de um jovem muito rico que o
recebeu das mãos da genitora escrava, que desencarnou ao trazê-lo à luz. Martim
Gaspar, o moço afazendado que lhe foi o pai solteiro, era homem de coração enrijecido,
muito cedo acostumado ao orgulho tiranizante, em face da incúria do lar em que
nascera. Abusava das donzelas cativas a seu talante e, em muitas ocasiões,
vendeu-as com os próprios filhos recém-natos para lhes não ouvir os choros e
petitórios. Temido na casa grande da qual se fizera absoluto senhor, por morte
do velho pai, que, em vão, buscara tardiamente controlar-lhe os instintos,
sabia usar o tronco e o chicote, sem qualquer compaixão. Era execrado pela
maioria dos servos e bajulado de quantos lhe obtinham os favores, a troco de
lisonja servil. Entretanto, para o filho Martim – o mesmo Adelino de agora –, a
sua ternura e dedicação não mostravam limites. Inexplicavelmente para ele
mesmo, amava-o com desvelado enternecimento, a ponto de providenciar-lhe
educação esmerada na própria fazenda. Entre pai e filho estabeleceram-se, dessa
forma, os mais santos laços afetivos. Eram companheiros inseparáveis nos jogos
e nos dos, no serviço e na caça. Foi assim que Gaspar, não obstante cruel para
com os outros rebentos da própria carne, nas senzalas sofredoras, não hesitou
em legitimá-lo como filho, perante as autoridades do tempo, tornando-o
partícipe de seu nome e de sua herança. Pai e filho contavam, respectivamente,
quarenta e três e vinte e um anos de idade, quando Gaspar, embora solteirão
amadurecido, resolveu casar-se, em grande metrópole, desposando Maria Emília,
leviana jovem de vinte primaveras que, trazida à grande casa rural, desenvolveu
sobre o enteado estranha fascinação. Martim, extremamente amado pelo genitor,
atraído agora para os encantos femininos da madrasta, passou a experimentar torturantes
conflitos sentimentais. Ele, que se julgava o melhor amigo de Gaspar, entrou a
detestá-lo. Não lhe tolerava a posse sobre a mulher que desejava, sabendo-se
por ela ardentemente querido, porquanto Maria Emília, pretextando essa ou
aquela necessidade, sabia isolá-lo em viagens diversas, nas quais lhe exacerbava
a afeição juvenil. Ambos souberam furtar-se a qualquer desconfiança e,
totalmente entregue à paixão que o requestava, o jovem Martim, desprevenido,
planejou o medonho parricídio em que se enliçou, desventurado. Sabendo o
genitor acamado, em tratamento do fígado enfermo, tomou a cooperação de dois
capatazes da sua inteira confiança, Antônio e Lucidio, igualmente verdugos de
meninas cativas, e, certa noite, administrou-lhe uma poção entorpecente, com
aprovação da madrasta... Tão logo se pôs o doente a dormir, coadjuvado pelos
dois cúmplices que odiavam o patrão, espalhou substâncias resinosas no leito
paterno, simulando, logo após, o incêndio no qual o mísero-Gaspar, em horríveis
padecimentos, se ausentou do corpo. Conduzido o pai ao sepulcro e
apoderando-se-lhe dos haveres, tentou a felicidade ao pé de Maria Emília;
todavia, o genitor desencarnado, a inflamar-se em cólera, envolveu-o em nuvens
de fluidos inflamados, contra os quais o infeliz não possuía defesa... Apegando-se
ao afeto da companheira, Martim procurou anestesiar a consciência e esquecer...
esquecer... Confiou a fazenda aos cuidados de ambos os cúmplices do tenebroso
delito e, arrimando-se à companhia da mulher, demandou à Europa, em busca de
repouso e distração. Tudo, porém, debalde... Ao fim de cinco anos de
resistência, tombou integralmente vencido, sob o jugo do Espírito paternal que
o cercava, incessantemente, apesar de invisível. Abriu-se-lhe a pele em chaga,
como se chamas ocultas o requeimassem. Circunscrito ao leito de dor e
constantemente empolgado pelo remorso, recapitulava mentalmente a morte do
genitor, em urros de martírio selvagem... Não sabia, desse modo, senão chorar,
gritando a esmo o arrependimento de que se via possuído, no que foi interpretado
à conta de louco pela própria companheira, que se dava pressa em reconhecer-lhe
a suposta alienação mental, de modo a inocentar-se perante os amigos e
servidores. Foi algemado a semelhante suplício que Martim recebeu escárnio e
abandono, dentro do próprio círculo doméstico, vindo a expirar em tremenda flagelação.
Martim Gaspar, o genitor assassinado, aguardou-o no túmulo, arrastando-o para
as sombras infernais, onde passou a exercer pavorosa vingança... O desditoso
filho desencarnado sofreu terríveis humilhações e indescritíveis tormentos,
durante onze anos sucessivos, em cárceres de treva, até que, amparado por Mensageiros
de Jesus, que lhe promoveram o resgate, ingressou em nosso instituto, ao que
fui informado, em lamentável situação. Tendo entrado em sintonia com o genitor,
sequioso de vindita, através das brechas mentais do remorso e do arrependimento
tardio, foi hipnotizado por gênios perversos, que o fizeram sentir-se dominado
de chamas torturantes. Fixada a imaginação dele em semelhante quadro de
angústia, o próprio Martim nutria com o pensamento culposo as labaredas em que
se torturava sem consumir-se, até que foi convenientemente aliviado e socorrido
por nossos instrutores, através de recursos magnéticos que lhe sanaram o
doloroso desequilíbrio. Devotou-se, então, depois de melhorado, aos serviços
mais duros de nossa organização, conquistando com o tempo apreciáveis lauréis
que lhe valeram a volta à esfera humana, com o direito de iniciar o pagamento
da larga dívida em que se onerou, desavisado. Cultuando a prece com a renovação
do mundo íntimo, renasceu de espírito inclinado à fé religiosa, ardente e
operante, encontrando no Espiritismo com Jesus, ao influxo dos amigos
desencarnados que o assistem, precioso campo de fortalecimento moral e trabalho
digno, no qual tem sabido estender, com louvável aproveitamento das horas, o seu
raio de ação no estudo edificante e na caridade pura, atraindo em seu favor as
mais amplas simpatias, por parte de irmãos encarnados e desencarnados, que lhe
devem generosidade e carinho. Atirado a imensas dificuldades materiais, desde
cedo cresceu órfão de pai, de vez que não valorizou no passado a ternura
paterna, lutando com extrema pobreza e com enfermidade constante... Custodiado,
porém, por benfeitores da nossa Mansão, foi conduzido a um templo espírita,
ainda muito jovem, onde, submetido a tratamento da epiderme esfogueada, entrou
no conhecimento de nossa Renovadora Doutrina... A leitura dos princípios
espíritas, ao sol do Evangelho do Senhor, constituiu para ele recordações naturais
dos ensinamentos assimilados em nossa casa, antes da reencarnação. Desde aí,
aceitou nobremente a responsabilidade de viver e buscou, acima de tudo, aplicar
a si próprio as diretrizes regeneradoras da fé que abraça. Disciplinou-se.
Rendeu sincero preito às suas obrigações e, não obstante os entraves orgânicos,
muito moço se dedicou às representações comerciais, de cujos labores retira os
abençoados recursos que sabe repartir com necessitados numerosos, reservando
para si tão-somente o indispensável. Não é um rico da Terra, na acepção do
conceito, mas um trabalhador da fraternidade que sabe dar o próprio coração
naquilo que distribui. Trilhando o caminho da simplicidade e da renúncia edificante,
modificou as impressões de muitos dos companheiros de outro tempo, que, nas
baixas camadas da sombra, se lhe haviam transformado em perseguidores e
desafetos, obsessores esses que, em lhe observando os exemplos novos, se
sentiam moralmente desarmados para os conflitos que se propunham manter. É
assim que não deixa de ressarcir as suas culpas, sofrendo-lhes o gravame em si
mesmo. Entretanto, pelos valores que entesoura, devotado ao bem alheio, resgata
o pretérito com o alívio possível, ganhando tempo e adquirindo novas bênçãos. Ajudando
aos outros, desbasta, dia a dia, o montante dos seus débitos, de vez que a
Misericórdia do Pai Celestial permite que os nossos credores atenuem o rigor da
cobrança, sempre que nos vejam oferecendo ao próximo necessitado aquilo que lhes
devemos...
Silas
confiou-se a pausa breve, mas Hilário, tanto quanto eu fascinado por sua
exposição clara e sensata, rogou, sedento de ensino:
– Continue,
Assistente. Esta lição viva ilumina-nos de esperança...
Como se
explica estar Adelino ganhando tempo?
Nosso amigo
sorriu e acrescentou:
– Correia, que
não merecia a ventura do lar tranquilo por haver arruinado o lar paterno,
casou-se e padeceu o abandono da companheira que lhe não entendeu o coração.
Avançando para
a terna Marisa que dormia, acentuou:
– Assim, pela
vida útil a que se consagra e pela caridade incessante que passou a exercer,
atraiu para junto de si, como filha da sua carne, a antiga madrasta que desviou
dos braços paternais, hoje reencarnada junto dele para reeducar-se ao calor de
seus exemplos nobres, guardando a dor de saber-se filha de pobre mulher que
renegou o tálamo conjugal, tanto quanto ela mesma o menosprezou no passado
recente. Mas... não é apenas essa a vantagem de Adelino...
Silas pousou
levemente a destra nos pequenos que ressonavam e prosseguiu:
– Dedicando-se
de alma e corpo à sua renovação com o Cristo, nosso amigo recolheu como filhos
adotivos os dois cúmplices do parricídio tremendo, os antigos capatazes Antônio
e Lucídio, que, abusando de humildes donzelas escravizadas, de quem furtavam os
filhinhos para exterminar ou vender, não encontraram senão o alcoice por berço,
vindo para o círculo afetivo do companheiro de outro tempo, no sangue africano
que tanto enxovalharam, de modo a lhe receberem o amparo moral à reforma
precisa.
Enquanto nos
edificávamos com o precioso ensinamento, Silas observou:
– Como é fácil
de reconhecer, nosso irmão, através da responsabilidade espírita-cristã,
corretamente sentida e vivida, conquistou a felicidade de reencontrar os laços
do pretérito criminoso para o necessário reajuste, ao passo que, se houvesse
desertado da luta pela irreflexão da companheira ou se tivesse cerrado a porta do
coração a dois meninos infelizes, teria adiado para futuros séculos o nobre
trabalho que está fazendo agora...
Dispúnhamo-nos
a formular novas indagações, mas Correia despedira-se da mãezinha e viera
ocupar um leito modesto, não longe das crianças. Demonstrando hábitos
respeitáveis, sentou-se em prece.
Foi quando
Silas, recomendando-nos cooperação, abeirou-se dele e aplicou-lhe passes
magnéticos, esclarecendo-nos, logo após:
– Ainda pela
utilidade que sabe imprimir aos seus dias, Adelino mereceu a limitação da
enfermidade congenial de que é portador. Tendo sofrido, por longo tempo, o
trauma perispirítico do remorso, por haver incendiado o corpo do próprio pai,
nutriu em si mesmo estranhas labaredas mentais que, como já lhes disse, o castigaram
intensamente além-túmulo... Renasceu, por isso, com a epiderme atormentada por
vibrações calcinantes que, desde cedo, se lhe expressaram na nova forma física
por eczema de mau caráter... Semelhante moléstia, em face da dívida em que se empenhou,
deveria cobrir-lhe todo o corpo, durante muitos e angustiosos lustros de
sofrimento, mas, pelos méritos que ele vai adquirindo, a enfermidade não tomou
proporções que o impeçam de aprender e trabalhar, porquanto granjeou a ventura
de continuar a servir, pelo seu impulso espontâneo na plantação constante do bem.
A essa altura,
talvez porque o dono da casa se dispusesse ao refúgio dos travesseiros, o
Assistente convidou-nos à retirada.
De volta à
Mansão, prosseguiu nosso amável mentor tecendo brilhantes comentários em torno
do “amor que cobre a multidão dos pecados”, como ensinou o Apóstolo, quando
Hilário, interpretando-me as indagações, considerou de improviso:
– Assistente,
com uma elucidação assim tão clara, é justo aspiremos a saber determinadas
minudências que a ela digam respeito.
Poderemos,
acaso, inteirar-nos quanto à situação de Martim Gaspar, o genitor que padeceu o
martírio do fogo em sua carne?
Porque Silas
se detivesse em silêncio, meu colega continuou:
– Terá ciência
do trabalho renovador de Adelino? Devotar-lhe-á, ainda, menosprezo e ódio?
– Martim
Gaspar – respondeu por fim o interlocutor –, infatigável que era na violência,
foi igualmente tocado pelos exemplos de nosso amigo. Observando-lhe a
transformação, abandonou as companhias indesejáveis a que se adaptara e rogou
asilo, em nosso instituto, vai para alguns anos, onde aceitou severas
disciplinas...
– E onde se
encontra agora? – insistiu Hilário, ansioso – porventura será permitido vê-lo,
para anotar-lhe as alterações?
Nesse
instante, porém, varávamos a entrada do santuário de nossas obrigações, e
Silas, sem mais possibilidades de alongar-se, afagou os ombros de nosso
companheiro, dizendo:
– Acalme-se,
Hilário. É possível estejamos de regresso ao assunto em breves horas.
Despedimo-nos,
conservando as anotações, à maneira de estudo interrompido, aguardando sequência.
No dia
seguinte, porém, grata surpresa visitou-nos o coração.
Quando o
relógio anunciou alta noite na extensa faixa planetária em que se mantinha o
nosso domicílio, o Assistente veio buscar-nos, prestimoso.
Demandaríamos
à esfera carnal, mas, naquela hora, em companhia de Druso, o orientador da
instituição.
Regozijamo-nos,
embora curiosos.
Era a primeira
vez que viajaríamos junto ao grande mentor que nos conquistara a mais ampla
reverência. E, se é verdade que o privilégio nos alegrava, ao mesmo tempo
indagávamos do motivo pelo qual se ausentaria ele da casa que não lhe
dispensava a presença.
Entretanto,
não houve oportunidade para longas divagações.
Em companhia
de Druso, que se fazia seguir por Silas, por duas das irmãs altamente
responsáveis em serviços da Mansão e por nós outros, utilizamo-nos do meio mais
rápido para a excursão, cujo objetivo desconhecíamos, porquanto a maior
autoridade nos trabalhos normais do instituto decerto não disporia de tempo para
uma viagem que não fosse a mais curta possível.
Grande era o
meu desejo de provocar o verbo do Assistente para a conversação educativa em
torno do problema que abordáramos na noite anterior; todavia, a presença de
Druso como que nos inibia a disposição de ferir qualquer tema que não partisse dele
mesmo, cuja dignidade não nos privava da expressão livre, mas nos infundia
incoercível respeito.
Foi assim que
no trajeto ligeiro lhe ouvimos a conceituação oportuna e sábia, em torno de
múltiplas questões de justiça e trabalho, admirando-lhe, cada vez mais, a
cultura e a benevolência. Espantado, no entanto, reconheci que a nossa equipe
estacionou à porta do lar de Adelino, que deixáramos na véspera.
Dois
auxiliares que conhecíamos de perto esperavam-nos no limiar. Depois de
recíprocas saudações, um deles avançou para Druso e anunciou, reverente:
– Diretor, o
pequenino recém-nato estará conosco, dentro de meia hora.
O grande
mentor agradeceu e convidou-nos a acompanhá-lo.
Na paisagem
doméstica que nos era familiar, o relógio marcava duas horas e vinte minutos da
madrugada. Atônitos, seguimos o orientador que tomara a vanguarda, penetrando o
aposento em que Adelino, ao que nos foi permitido supor, começava a dormir.
Druso
acariciou-lhe a fronte por momentos e vimos Correia erguer-se do corpo de
carne, qual se fora movido por alavancas magnéticas poderosas, caindo nos
braços do grande orientador, à maneira de criança enternecida e feliz.
– Meu amigo –
disse-lhe Druso, entre grave e terno –, chegou a hora do reencontro...
Correia
começou a chorar, aterrorizado, sem conseguir desenfaixar-se-lhe dos braços
acolhedores.
– Oremos
juntos – acrescentou o bondoso amigo.
E, levantando
os olhos para o Alto, sob nossa profunda atenção, Druso suplicou:
– “Deus de Bondade, Pai de Infinito Amor, que criaste
o tempo como incansável guardião de nossas almas destinadas ao Teu seio,
fortalece-nos para a renovação necessária!...
“Tu, que nos
conheces os crimes e deserções, concede-nos a bênção das dores e das horas para
redimi-los, unge-nos com o entendimento de Tuas leis, para que não repilamos as
oportunidades do resgate!
“Emprestaste-nos os tesouros do trabalho e do
sofrimento, como favores de Tua misericórdia, para que nos consagremos à reabilitação
dolorosa, mas justa...
“Nós, os prisioneiros da culpa, somos também operários
de nossa libertação, ao bafejo de Teu carinho.
“Ó Pai, infunde-nos coragem para que nossas fraquezas
sejam esquecidas, inflama em nosso espírito o entusiasmo santo do bem, para que
o mal não nos apague os bons propósitos, e conduze-nos pelo carreiro da
renunciação para que a nossa memória não se aparte de Ti!...
“Que possamos orar como Jesus, o Divino Mestre que nos
enviaste aos corações, a fim de que nos rendamos, de todo, aos Teus
desígnios!...”
Depois de leve
pausa, repetiu em pranto a prece dominical:
– “Pai Nosso, que estás nos Céus, santificado seja o
Teu nome. “Venha a nós o Teu reino. “Faça-se a Tua vontade, assim na Terra como
nos Céus. “O pão nosso de cada dia dá-nos hoje. “Perdoa-nos as nossas dívidas,
assim como perdoamos aos nossos devedores. “Não nos deixes cair em tentação e
livra-nos de todo mal, porque Teus são o reino, o poder e a glória para sempre.
“Assim seja.”
Quando a sua
voz emudeceu, profunda emotividade exercia sobre nós inexpressável domínio.
Reconduzido ao
veículo carnal, Adelino acordou em copiosas lágrimas... Reconhecia-se-lhe o
júbilo intimo, se bem não pudesse guardar a consciência integral da comunhão conosco.
Findos alguns
minutos de expectação, que transcorreram céleres, escutamos lá fora o choro
convulso de uma criança tenra...
Enlaçado por
Druso, o dono da casa ausentou-se do leito e, incontinenti, abriu a porta que
comunicava o interior com a calçada externa, em cujas lajes, vigiado por amigos
da Mansão, pobre recém-nato vagia aflitivamente.
Tomado de
surpresa, Correia ajoelhou-se, enquanto o grande orientador lhe dizia com
segurança:
– Adelino, eis
o pai ofendido que, enjeitado pelo coração materno que ainda não mereceu, vem
ao encontro do filho regenerado!
Correia não
lhe ouviu a palavra, na acústica da carne, mas registrou-a no templo mental,
como apelo do amor celeste que lhe trazia ao coração mais uma criança
abandonada e infeliz... Tomado de alegria, para ele inexplicável, abraçou o
pequerrucho com espontâneo gesto de amor e, após conchegá-lo de encontro ao peito,
voltou para dentro, gritando jubiloso:
– Meu
filho!... meu filho!...
Silas, entre
Hilário e eu, comunicou-nos, emocionado:
– Martim
Gaspar retorna à experiência física, asilando-se nos braços do filho que o
desprezou. Não tivemos, contudo, qualquer ensejo a mais dilatada conversação.
Druso, enxugando as lágrimas, advertiu-nos em voz alta, qual se estivesse
falando para si mesmo:
– Oxalá,
quando estivermos de novo em pleno nevoeiro da carne, possamos, também nós,
abrir o coração ao excelso amor de Jesus, para que não venhamos a falir nas
provas necessárias!... E havia tanto recolhimento e tanta angústia naquele
olhar que nos habituara ao mais doce enternecimento e ao mais profundo respeito
que, de volta à Mansão, nenhum de nós ousou quebrar-lhe o doloroso e expressivo
silêncio.
QUESTÕES PROPOSTAS PARA ESTUDO
1. De que
maneira os débitos podem ser aliviados perante a Justiça Divina? Explique.
2. Neste
parágrafo: "- Dois de nossos médicos o vêm assistindo atenciosamente,
quando se encontra ausente do vaso físico por influência do sono." Como se processam os tratamentos médicos de
ordem espiritual, durante o sono físico ?
3. Comente o
seguinte parágrafo:
"Era
curioso pensar que nós mesmos, no primeiro encontro fortuito, nos sentiamos
prontos a partilhar-lhe as tarefas, tão somente atraídos por sua irradiante
bondade.
A abnegação,
em toda a parte, é sempre uma estrela sublime.
Basta mostrar-se para que todos gravitemos em torno de sua luz."
O que
despertou em André Luiz e Hilário o desejo de ajudar Adelino ?
4. De que
maneira o remorso e o arrependimento podem nos fazer mal ? Não são esses sentimentos necessários à
renovação do espírito endividado ?
5. O que o
Assistente quiz dizer quando afirma: "pelos valores que entesoura,
devotado ao bem alheio, resgata o pretérito com o alívio possível, ganhando
tempo e adquirindo novas bênçãos.
Ajudando aos outros, desbasta, dia a dia, o montante dos seus débitos,
de vez que a Misericórdia do Pai Celestial permite que os nossos credores
atenuem o rigor da cobrança, sempre que nos vejam oferecendo ao próximo
necessitado aquilo que lhes devemos... "
Por que
Adelino estaria ganhando tempo ?
6. Porque
Adelino nasceu com o problema da eczema na pele ?
7. O que mais lhe chamou atenção neste capítulo
?
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