Capítulo 9 - Possessão
O cavalheiro
doente, na pequena fila de quatro pessoas que haviam comparecido à cata de
socorro, parecia incomodado, aflito... Articulava palavras que eu não conseguia
registrar com clareza, quando o irmão Clementino, consultado por Áulus, disse,
cortês, para o Assistente:
— Sim, já que
o esforço se destina a estudos, permitiremos a manifestação.
Percebi que o
nosso orientador solicitava alguma demonstração importante.
Convidados
pelo instrutor, abeiramo-nos do moço enfermo que se fazia assistir por uma
senhora de cabelos grisalhos, sua própria mãezinha. Atendendo às recomendações
do supervisor, os guardas admitiram a passagem de uma entidade evidentemente
aloucada, que atravessou, de chofre, as linhas vibratórias de contenção, vociferando,
frenética:
— Pedro!
Pedro!...
Parecia ter a
visão centralizada no doente, porque nada mais fixava além dele. Alcançando o
nosso irmão encarnado, este, de súbito, desfecha um grito agudo e cai
desamparado. A velha progenitora mal teve tempo de suavizar-lhe a queda
espetacular.
De imediato,
sob o comando de Clementino, Silva determinou que o rapaz fosse transferido
para um leito de câmara próxima, isolando-o da assembleia. Dona Celina foi
incumbida do trabalho de assistência. Junto dela acompanhamos o enfermo com
carinhoso interesse. As variadas tarefas do recinto prosseguiram sem quebra de
ritmo, enquanto nos insulávamos no aposento para a cooperação que o caso
exigia. Pedro e o obsessor que o jugulava pareciam agora fundidos um no outro.
Eram dois contendores engalfinhados em luta feroz.
Fitando o
companheiro encarnado mais detidamente, concluí que o ataque epiléptico, com
toda a sua sintomatologia clássica, surgia claramente reconhecível. O doente
trazia agora a face transfigurada por indefinível palidez, os músculos jaziam
tetanizados e a cabeça, exibindo os dentes cerrados, mostrava-se flectida para
trás, enquanto que os braços se assemelhavam a dois galhos de arvoredo, quando
retorcidos pela tempestade.
Dona Celina e
a matrona afetuosa acomodaram-no na cama e dispunham-se à prece, quando a
rigidez do corpo se fez sucedida de estranhas convulsões a se estenderem aos
olhos que se moviam em reviravoltas continuas. A lividez do rosto deu lugar à
vermelhidão que invadiu as faces congestas. A respiração tornara-se angustiada,
ao mesmo tempo em que os esfíncteres se relaxavam, convertendo o enfermo em
torturado vencido.
O insensível
perseguidor como que se entranhara no corpo da vítima.
Pronunciava
duras palavras, que somente nós outros conseguíamos assinalar, de vez que todas
as funções sensoriais de Pedro se mostravam em deplorável inibição. Dona
Celina, afagando o doente, pressentia a gravidade do mal e registrava a
presença do visitante infeliz, contudo, permanecia alerta de modo a manter-se,
valorosa, em condições de auxiliá-lo. Anotei-lhe a cautela para não se
apassivar, a fim de seguir, por si própria, todos os trâmites do socorro.
Bondosa, tentou estabelecer um entendimento com o verdugo, mas em vão.
O desventurado
continuava gritando para os nossos ouvidos, sem acolher-lhe os apelos
comovedores.
—
Vingar-me-ei! Vingar-me-ei! Farei justiça por minhas próprias mãos!... —
bradava, colérico.
Repreensões
injuriosas apagavam-se na sombra, porquanto não conseguiam exteriorizar-se
através das cordas vocais da vítima, a contorcer-se. Permanecia o cavalheiro
plenamente ligado ao algoz que o tomara de inopino. O córtex cerebral
apresentava-se envolvido de escura massa fluídica. Reconhecíamos no moço
incapacidade de qualquer domínio sobre si mesmo.
Acariciando-lhe
a fronte suarenta, Áulus informou, compadecido:
— É a
possessão completa ou a epilepsia essencial.
— Nosso amigo
está inconsciente? — aventurou Hilário, entre a curiosidade e o respeito.
— Sim, considerado
como enfermo terrestre, está no momento sem recursos de ligação com o cérebro
carnal. Todas as células do córtex sofrem o bombardeio de emissões magnéticas
de natureza tóxica. Os centros motores estão desorganizados. Todo o cerebelo
está empastado de fluidos deletérios. As vias do equilíbrio aparecem
completamente perturbadas. Pedro temporariamente não dispõe de controle para
governar-se, nem de memória comum para marcar a inquietante ocorrência de que é
protagonista. Isso, porém, acontece no setor da forma de matéria densa, porque,
em espírito, está arquivando todas as particularidades da situação em que se
encontra, de modo a enriquecer o patrimônio das próprias experiências.
Fitei,
sensibilizado, o quadro triste e perguntei, com objetivo de estudo:
— De vez que
nos achamos defrontados por um encarnado e por um desencarnado, jungidos um ao
outro, não obstante a dolorosa condição de sofrimento em que se caracterizam,
será lícito considerar o fato sob nosso exame como sendo um transe mediúnico?
Embora ativo
na tarefa assistencial, o instrutor respondeu:
— Sim,
presenciamos um ataque epiléptico, segundo a definição da medicina terrestre,
entretanto, somos constrangidos a identificá-lo como sendo um transe mediúnico
de baixo teor, porquanto verificamos aqui a associação de duas mentes
desequilibradas, que se prendem às teias do ódio recíproco.
E, fixando o
par de infelizes em contorções, acrescentou:
— Nessa
aflitiva situação achava-se Pedro nas regiões inferiores, antes da presente
reencarnação que lhe constitui uma bênção. Por muitos anos, ele e o adversário
rolaram nas zonas purgatoriais, em franco duelo. Presentemente, melhorou. Qual
ocorre em muitos processos semelhantes, os reencontros de ambos são agora mais
espaçados, dando azo ao fenômeno que observamos, em razão de o rapaz ainda
trazer o corpo perispirítico provisoriamente lesado em centros importantes.
Nesse ínterim,
percebendo a dificuldade para atingir o obsessor com a palavra falada, Dona
Celina, com o auxílio de nosso orientador, formulou vibrante prece, implorando
a Compaixão Divina para os infortunados companheiros que ali se digladiavam
inutilmente. As frases da venerável amiga libertavam jatos de força
luminescente a lhe saltarem das mãos e a envolverem em sensações de alívio os
participantes do conflito.
Vimos que o
perseguidor, qual se houvesse aspirado alguma substância anestesiante, se
desprendeu automaticamente da vítima, que repousou enfim, num sono profundo e
reparador. Guardas e socorristas conduziram o obsessor semiadormecido a um
local de emergência. E enquanto Dona Celina ministrava um pouco d’água
fluidificada à genitora do enfermo, chorosa e assustadiça, retornamos à
conversação cordial.
— Apesar da
carga doentia que suporta na atualidade, devemos aceitar o nosso Pedro na
categoria de um médium? — perguntou Hilário, atencioso.
— Pela
passividade com que reflete o inimigo desencarnado, será justo tê-lo nessa
conta, contudo, precisamos considerar que, antes de ser um médium na acepção comum
do termo, é um Espírito endividado a redimir-se.
— Mas não
poderá cogitar do próprio desenvolvimento psíquico?
O Assistente
sorriu e observou:
— Desenvolver,
em boa sinonímia, quer dizer ―retirar do invólucro‖, ―fazer progredir‖ ou
produzir. Assim compreendendo, é razoável que Pedro, antes de tudo, desenvolva
recursos pessoais no próprio reajuste. Não se constroem paredes sólidas em
bases inseguras. Necessitará, portanto, curar-se. Depois disso, então...
— Se é assim —
objetou meu colega —, não resultará infrutífera a sua frequência a esta casa?
— De modo
algum. Aqui recolherá forças para refazer-se, assim como a planta raquítica
encontra estímulo para a sua restauração no adubo que lhe oferecem. Dia a dia,
ao contato de amigos orientados pelo Evangelho, ele e o desafeto incorporarão
abençoados valores em matéria de compreensão e serviço, modificando
gradativamente o campo de elaboração das forças mentais. Sobrevirá, então, um
aperfeiçoamento de individualidades, a fim de que a fonte mediúnica surja, mais
tarde, tão cristalina quanto desejamos. Salutares e renovadores pensamentos
assimilados pela dupla de sofredores em foco expressam melhoria e recuperação
para ambos, porque, na imantação recíproca em que se veem, as ideias de um reagem
sobre o outro, determinando alterações radicais.
Diante da
nossa atitude cismarenta, no exame das questões complexas de que nos sentíamos
nodeados, o Assistente ponderou:
— Aparelhos
mediúnicos valiosos naturalmente não se improvisam. Como todas as edificações
preciosas, reclamam esforço, sacrifício, coragem, tempo... E sem amor e
devotamento, não será possível a criação de grupos e instrumentos louváveis,
nas tarefas de intercâmbio.
Voltando,
porém, a atenção para o doente adormecido, Áulus continuou:
— Nosso amigo
está preso a significativo montante de débitos com o passado e ninguém pode
avançar livremente para o amanhã sem solver os compromissos de ontem. Por esse
motivo, Pedro traz consigo aflitiva mediunidade de provação. É da Lei que
ninguém se emancipe sem pagar o que deve. A rigor, por isso, deve ser encarado
como enfermo, requisitando carinho e tratamento. Em seguida, como se quisesse
recolher dados informativos para completar a lição, tocou a fronte de Pedro,
auscultando-a demoradamente.
Decorridos
alguns instantes de silêncio, informou:
— A luta vem
de muito longe. Não dispomos de tempo para incursões no passado, mas, de
imediato, podemos reconhecer o verdugo de hoje como vítima de ontem. Na derradeira
metade do século findo, Pedro era um médico que abusava da missão de curar. Uma
análise mental particularizada identificá-lo-ia em numerosas aventuras menos
dignas. O perseguidor que presentemente lhe domina as energias era-lhe irmão
consanguíneo, cuja esposa nosso amigo doente de agora procurou seduzir. Para
isso, insinuou-se de formas diversas, além de prejudicar o irmão em todos os
seus interesses econômicos e sociais, até incliná-lo à internação num hospício,
onde estacionou, por muitos anos, aparvalhado e inútil, à espera da morte.
Desencarnando e encontrando-o na posse da mulher, desvairou-se no ódio de que
passou a nutrir-se. Martelou-lhes, então, a existência e aguardou-o,
além-túmulo, onde os três se reuniram em angustioso processo de regeneração. A
companheira, menos culpada, foi a primeira a retornar ao mundo, onde mais tarde
recebeu o médico delinquente nos braços maternais, como seu próprio filho,
purificando o amor de sua alma. O irmão atraiçoado de outro tempo, todavia,
ainda não encontrou forças para modificar-se e continua vampirizando-o,
obstinado no ódio a que se rendeu impensadamente.
Respondendo
com um olhar amigo à nossa expressão de assombro, acrescentou:
— Penetramos
forçosamente no inferno que criamos para os outros, a fim de experimentarmos,
por nossa vez, o fogo com que afligimos o próximo. Ninguém ilude a justiça. As
reparações podem ser transferidas no tempo, mas são sempre fatais.
O ensinamento
era simples, contudo, a terrível situação do enfermo fatigado e triste infundia-nos
justificável espanto. Estudando sempre, Hilário considerou:
— Se Pedro, no
entanto, é ainda um médium torturado, que poderá fazer num agrupamento como
este?
O instrutor
sorriu e obtemperou:
— O acaso não
consta dos desígnios superiores. Não nos aproximamos uns dos outros sem razão.
Decerto, nosso amigo possui aqui ligações afetivas do pretérito com o dever de
auxiliá-lo. Se não pode, desse modo, ser um elemento valioso ao conjunto, de
imediato, pode e precisa receber o concurso fraterno, imprescindível ao seu
justo soerguimento.
— Curar-se-á,
contudo, em tempo breve? — indaguei por minha vez.
— Quem sabe? —
retrucou Áulus, sereno.
E, com o grave
entono de quem pesa a substância das próprias palavras, prosseguiu:
— Isso
dependerá muito dele e da vítima com quem se encontra endividado. A assimilação
de princípios mentais renovadores determina mais altas visões da vida. Todos os
dramas obscuros da obsessão decorrem da mente enfermiça. Aplicando-se com
devotamento às novas obrigações de que será investido, caso persevere no campo
de nossa Consoladora Doutrina, sem dúvida abreviará o tempo de expiação a que
se acha sujeito, de vez que, em se convertendo ao bem, modificará o tônus
mental do adversário, que se verá arrastado à própria renovação pelos seus
exemplos de compreensão e renúncia, humildade e fé. Ainda assim, depois de se
extinguirem os acessos de possessão, Pedro sofrerá os reflexos do desequilíbrio
em que se envolveu, a se exprimirem nos fenômenos mais leves da epilepsia
secundária, que emergirão, por algum tempo, ante as simples recordações mais
fortes da luta que vem atravessando, até o integral reajuste do corpo
perispirítico.
— E isso é
trabalho de longa duração? — inquiriu Hilário, algo aflito.
Nosso
interlocutor estampou significativa expressão fisionômica e ponderou:
— Quem poderá
penetrar a consciência alheia? Com o esforço da vontade é possível apressar a
solução de muitos enigmas e reduzir muitas dores. O assunto, porém, é de foro
íntimo... Estejamos entretanto convencidos de que as sementes da luz jamais se
perdem. Os médiuns que hoje se enlaçam a tremendas provas, se persistirem na
plantação de melhores destinos, transformar-se-ão em valiosos trabalhadores no
futuro que a todos aguarda em abençoadas reencarnações de engrandecimento e
progresso...
E, ante a
nossa admiração, concluiu:
— O problema é
de aprender sem desanimar e de servir ao bem sem esmorecer.
Questões para estudo
1) Todo aquele que sofre uma possessão é um médium?
2) Qualquer encarnado pode sofrer uma possessão?
3) Por quê a magnetização do encarnado em tratamento
auxilia o possessor?
4) Toda mediunidade se aflora sempre para o trabalho?
5) Como devemos trabalhar a obsessão e a possessão em
médiuns?
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