segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Capítulo XII – Item 11 a 16
O duelo

11. Verdadeiramente grande só é aquele que, encarando a vida como uma viagem que deve conduzi-lo a um objetivo, não se deixa perturbar pelas dificuldades do caminho e jamais se afasta, por um instante que seja, do rumo certo. Com o olhar incessantemente dirigido para a meta que deseja alcançar, pouco lhe importa que as dificuldades e os espinhos do caminho possam arranhá-lo, eles apenas roçam nele, levemente, sem o ferirem, sem o impedirem de continuar sua caminhada. Arriscar seus dias para vingar-se de uma injúria é recuar diante das provas da vida; é sempre um crime aos olhos de Deus, e se não estivésseis tão iludidos, como estais, pelos vossos preconceitos, veríeis isso como uma ridícula e suprema loucura aos olhos dos homens.
O homicídio cometido por duelo é crime, a vossa própria legislação o reconhece. Ninguém tem o direito, em hipótese alguma, de atentar contra a vida de seu semelhante. É crime aos olhos de Deus, que traçou a vossa linha de conduta; neste caso, mais do que em qualquer outro, sois juízes em causa própria. Lembrai-vos de que sereis perdoados de acordo com o que vós mesmos tiverdes perdoado; pelo perdão aproximai-vos da Divindade, porquanto a clemência é irmã do poder. Enquanto uma gota de sangue humano correr sobre a Terra pelas mãos dos homens, o verdadeiro reino de Deus ainda não terá chegado, esse reino de pacificação e de amor que deve banir do vosso globo, para sempre, a animosidade, a discórdia, a guerra. Então a palavra duelo só existir á na vossa língua como uma antiga e vaga lembrança de um passado que não existe mais; os homens não conhecerão outro antagonismo entre eles que a nobre rivalidade do bem. (Adolphe, bispo de Alger. Marmande, 1864).

12. O duelo, em certos casos, pode ser uma prova de coragem física, de desprezo pela vida, mas é, incontestavelmente, assim como o suicídio, uma prova de covardia moral. O suicida não tem coragem de enfrentar os reveses da vida, o duelista não tem coragem de enfrentar as ofensas. Cristo não vos disse que é uma demonstração de maior honra e coragem o ato de oferecer a face esquerda àquele que bateu na direita do que em vingar uma injúria? Cristo não disse a Pedro, no jardim das Oliveiras: “Recoloca a tua espada na bainha, porque aquele que matar com a espada morrerá pela espada?” Com essas palavras, Jesus não condenou o duelo para sempre? De fato, meus filhos, o que é então essa coragem nascida de um temperamento violento, sanguinário e colérico, que diante da primeira ofensa reage bradando? Onde, pois, está a grandeza da alma daquele que, à menor injúria, quer lavá-la com sangue? Que ele trema porque, no fundo da sua consciência, uma voz sempre lhe perguntará: “Caim, Caim, que fizeste do teu irmão?” E ele responderá a essa voz: “Foi necessário sangue para salvar a minha honra.” Mas ela retrucará: “Tu quiseste salvá-la diante dos homens por alguns instantes que te restam para viver sobre a Terra, e não pensaste em salvá-la diante de Deus?” Pobre louco! Quanto sangue então Cristo vos pediria por todos os ultrajes que recebeu! Não somente o haveis ferido com espinhos e a lança, não somente o haveis colocado na cruz infamante, mas ainda, no meio da sua agonia, ele pôde ouvir as zombarias que lhe foram dirigidas. Que reparação, depois de tantos ultrajes, ele vos pediu? O último grito do cordeiro foi uma prece pelos seus carrascos. Oh! como Ele, perdoai e rogai por aqueles que vos ofendem.
Amigos, lembrai-vos destas palavras: “Amai-vos uns aos outros”, e então, ao receberdes um golpe motivado pelo ódio, retribuireis com um sorriso, e ao insulto, com o perdão. Certamente, o mundo se levantará furioso e vos considerará covardes; levantai a cabeça bem alto, e mostrai então que a vossa fronte, também ela, não temeria carregar-se de espinhos, segundo o exemplo dado por Cristo; mas que a vossa mão não quer ser cúmplice de uma morte, que o orgulho e o amor-próprio, revestidos de uma falsa aparência de honra, autorizam. Quando Deus vos criou, Ele vos deu o direito de vida e de morte, uns sobre os outros? Não, Ele deu esse direito somente à Natureza, para se reformar e se reconstruir; quanto a vós, nem mesmo vos foi permitido dispor de vós mesmos. Da mesma forma que o suicida, o duelista estará manchado de sangue quando chegar a Deus e, tanto para um quanto para outro, o Soberano Juiz prepara rudes e longos castigos. Se ele ameaça com a sua justiça aquele que diz raca a seu irmão, quanto mais severa não será a pena para aquele que comparece diante dele com as mãos sujas do sangue do seu irmão. (Santo Agostinho. Paris, 1862.)

13. O duelo - assim como o que antigamente se denominava o Julgamento de Deus,[1] - é uma dessas instituições bárbaras que ainda regem a sociedade. O que diríeis, entretanto, se vísseis os dois antagonistas serem mergulhados em água fervente ou submetidos ao contato de um ferro em brasa para decidir a sua pendência, e a razão ser dada ao que melhor sofresse a sua prova? Por certo chamaríeis esses costumes de insensatos. O duelo é ainda pior que tudo isso. Para o duelista experiente, é um assassinato cometido a sangue-frio com toda a premeditação desejada; para o adversário, que está quase certo de que vai morrer, em razão da sua fraqueza e da sua falta de habilidade, é um suicídio cometido com a mais fria reflexão. Sei que muitas vezes se procura, para se evitar essa alternativa igualmente criminosa, entregar o fato ao acaso; mas então isso não é o mesmo que, sob uma outra forma, voltar ao Julgamento de Deus da Idade Média? E naquela época era-se infinitamente menos culpado; o próprio nome, Julgamento de Deus, indica uma fé, ingênua, isso é verdade, mas uma fé na justiça de Deus que não podia deixar que um inocente morresse, enquanto que no duelo tudo depende da força bruta, de tal maneira que, frequentemente, quem morre é o ofendido.
O estúpido amor-próprio, a tola vaidade e o louco orgulho... quando serão substituídos pela caridade cristã, o amor ao próximo e a humildade de que o Cristo nos deu o exemplo e o ensinamento? Só então desaparecerão esses preconceitos monstruosos que ainda dominam os homens, e que as leis são impotentes para reprimir, porquanto não é suficiente proibir o mal e prescrever o bem, é preciso que o germe do bem e o horror ao mal estejam no coração do homem. (Um espírito protetor. Bordeaux, 1861.)

14. Que irão pensar de mim, dizeis muitas vezes, se eu me recusar a reparar o que me é cobrado, ou se não exigir reparação de quem me ofendeu? Os loucos, como vós, os homens atrasados, vos censurarão; mas aqueles que são iluminados pela luz do progresso intelectual e moral dirão que procedestes segundo a verdadeira sabedoria. Refleti um pouco; por uma palavra dita por um de vossos irmãos, muitas vezes impensadamente ou até mesmo inofensiva, vosso orgulho se sente ferido, respondeis a ele de uma forma agressiva, e daí surge uma provocação. Antes de chegar ao momento decisivo, indagai de vós se agistes como um cristão. Se privardes a sociedade de um dos seus membros, que contas prestareis a ela? Pensastes no remorso que ireis sentir por tirardes de uma mulher o seu marido, de uma mãe o seu filho, dos filhos o seu pai e o seu sustento? Certamente, aquele que ofende deve uma reparação ao ofendido, e não é mais honroso para ele dá-la espontaneamente pelo reconhecimento dos erros praticados do que expor a vida daquele que tem o direito de se queixar? Quanto ao ofendido, é preciso reconhecer que, muitas vezes, ele pode ter sido gravemente atingido, tanto em sua pessoa quanto em relação àqueles que lhe são caros. Não é somente o amor-próprio que está em jogo, o coração está ferido, sofre. Mas, além de ser estúpido arriscar sua vida contra um miserável capaz de cometer uma infâmia, será que ele sendo morto, a infâmia que ele cometeu, qualquer que seja, deixa de existir? O sangue derramado não dá mais valor a um fato que, sendo falso, deve desaparecer por si mesmo, e que, se for verdadeiro, deve ser oculto pelo silêncio? Portanto, nada restará além da satisfação da vingança saciada; porém, triste satisfação esta que muitas vezes, ainda nesta vida, deixa dolorosos remorsos! E se é o ofendido que morre, onde está a reparação?
Quando a regra de conduta dos homens for a caridade, eles ajustarão seus atos e suas palavras a este ensinamento: “Não faças aos outros o que não desejas que os outros te façam”, aí então todas as causas de desentendimentos desaparecerão, e com elas os motivos para os duelos e para as guerras, que nada mais são que duelos entre povos. (Francisco Xavier.[2] Bordeaux, 1861.)

15. O homem do mundo, o homem feliz, que, por uma palavra ofensiva, um motivo pouco importante, arrisca a vida que Deus lhe deu, arrisca a vida de seu semelhante que só pertence a Deus, esse é cem vezes mais culpado que o miserável que, dominado pela cobiça, por uma necessidade qualquer, introduz-se em uma casa para ali roubar o que deseja e mata aqueles que se opõem à sua deliberação. Este último quase sempre é um homem sem educação, que tem apenas noções imperfeitas do bem e do mal, enquanto que o duelista quase sempre pertence à classe mais esclarecida; um mata brutalmente, o outro, com método e polidez, o que faz com que a sociedade o desculpe. Digo mesmo que o duelista é infinitamente mais culpado que o infeliz que, atendendo a um sentimento de vingança, mata em um momento de desespero. O duelista não tem como desculpa o envolvimento da paixão, porque entre o insulto e a reparação sempre há tempo para refletir; portanto, ele age friamente e com resolução premeditada; tudo é calculado e estudado para mais seguramente eliminar o seu adversário. É certo que ele também expõe a sua vida, e é isso que reabilita o duelo aos olhos do mundo, porque nele se vê um ato de coragem e de desprezo pela própria vida. Porém, haverá verdadeira coragem naquele que está seguro de si? O duelo, herança dos tempos bárbaros, onde o direito do mais forte fazia a lei, irá desaparecer mediante uma apreciação mais íntegra do verdadeiro ponto de honra, e à medida que o homem tiver uma fé mais viva na vida futura. (Agostinho. Bordeaux, 1861.)

16. Nota. Os duelos se tornaram cada vez mais raros, e se, de tempos em tempos, ainda se veem alguns dolorosos exemplos, o número deles não tem comparação com o que ocorria antigamente. Naqueles tempos um homem não saía de casa sem prever um encontro, assim sendo sempre tomava as suas precauções. Um sinal característico dos costumes de uma época e dos povos está no uso habitual, ostensivo ou oculto, de armas ofensivas e defensivas. O término de semelhante uso demonstra o abrandamento dos costumes, sendo interessante observar a gradação desse hábito desde a época em que os cavaleiros só cavalgavam com armaduras de ferro e armados com uma lança, até aquela em que portavam uma simples espada, tornando-se ela antes um adorno e um acessório do brasão do que uma arma agressiva. Um outro sinal de mudança nos costumes é que antigamente os combates comuns aconteciam em plena rua, diante da multidão que se afastava para deixar espaço livre para os duelistas, hoje eles se escondem. Atualmente, a morte de um homem é um acontecimento que causa comoção, outrora não se dava atenção a tal fato. O Espiritismo fará desaparecer os últimos vestígios do barbarismo, inspirando aos homens o espírito de caridade e de fraternidade.

Questões para estudo


1 – Comente a frase: “Só é verdadeiramente grande aquele que, considerando a vida uma viagem que o há de conduzir a determinado ponto, pouco caso faz das asperezas da jornada e não deixa que seus passos se desviem do caminho reto”.


2 – Apesar da evolução que o ser humano alcançou, ainda existem duelos em nossas vidas?



[1] Julgamento de Deus: eram assim chamadas as provas extraordinárias às quais se recorria, quando faltavam as provas materiais, para comprovar a inocência ou a culpabilidade de um acusado. Tais provas consistiam em se mergulhar o braço em uma vasilha com água fervendo, ou em pegar, com a mão, uma barra de ferro em brasa ou, ainda, ficar com os braços elevados em cruz. Aquele que permanecesse mais tempo nessa posição ganhava a causa e era considerado inocente. Uma outra prova, também denominada Julgamento de Deus, era o duelo judiciário, que esteve em vigor do século X ao XII, e no qual, dos dois adversários, o vencedor era proclamado inocente. Só aos homens livres e aos nobres era permitido comprovar a sua inocência, diante de uma acusação, por meio do duelo, ou provocar um adversário. Pouco a pouco foram desaparecendo esses tipos de julgamento em que a razão e a equidade eram substituídas por um capricho da sorte. (N.T. de acordo com o dicionário Nouveau Petit Larousse Illustré.)
[2] Francisco Xavier: conhecido como Apóstolo das Índias, amigo e discípulo de Ignácio de Loiola, nasceu no castelo de Xavier, em Navana, no ano de 1506. Célebre por suas numerosas missões na Ásia Oriental e Japão, onde esteve a serviço de Portugal. Em 1542 foi para a Índia, chegando a Goa, antiga colônia portuguesa, nos primeiros dias de maio. Desencarnou naquela cidade em 1552, sendo ali sepultado. (N.T.)

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