Capítulo 9 - A HISTÓRIA DE SILAS
Na noite imediata, acompanhando o Assistente, eu e
Hilário achamo-nos de novo na residência de Luís. Os irmãos de Antônio Olímpio
receberam-nos de bom grado.
Em larga copa da fazenda, reunia-se a família a dois
agregados, em repasto ligeiro.
Marcava o relógio vinte e uma horas.
A fisionomia do dono da casa era quase a mesma da
véspera, não obstante a diferença que a máscara física lhe impunha.
Enquanto Adélia acariciava as crianças, entontecidas
de sono, o marido comentava o noticiário radiofônico, destacando tópicos alarmantes
que assinalara nos setores da economia. E, falando para os amigos assombrados,
salientou as dificuldades públicas, relacionou misérias imaginárias, criticou
os políticos e os administradores e referiu-se às pragas do café e da mandioca,
detendo-se, particularmente, sobre as epizootias.
Por fim, não satisfeito em enunciar as calamidades da
Terra, falou, inconsequente, quanto à suposta ira do Céu, afirmando crer que o
fim do mundo estava próximo e clamando contra o egoísmo dos ricos, que agravava
o infortúnio dos pobres.
Silenciosos todos, ouvíamos-lhe a palavra, quando
Leonel, mais confiado, dirigiu-se ao Assistente, observando:
– Estão vendo? Este homem – e apontou Luís, cujo verbo
dominava a pequenina assembleia familiar – é o derrotismo em pessoa. Enxerga
tudo em termos de cinza e lama, ajuíza com firmeza sobre os desastres sociais e
conhece as zonas mais tristes da indigência coletiva; entretanto, não sabe
desfazer-se de um só centavo dos milhões que retém, a favor dos que sofrem
nudez e fome... E, depois de um sorriso irônico;
– Acreditam, acaso, possa ele continuar merecendo a
felicidade da permanência num corpo carnal?
Silas contemplou as personagens da cena doméstica,
mostrando imensa piedade no semblante amigo, e considerou:
– Leonel, todas as suas observações apresentam lógica
e verdade, à primeira vista. Superficialmente, Luís é um exemplar consumado de
pessimismo e de usura. Todavia, no fundo, ele é um doente necessitado de
compaixão. Há moléstias da alma que arruínam a mente por tempo indeterminado.
Quem seria ele, amparado por influências outras? Espiritualmente abafado entre as
visões da fortuna terrestre com que lhe assediamos o pensamento, o infeliz
perdeu o contato com os livros nobres e com as nobres companhias. Tem a
socorrê-lo apenas a religião domingueira dos crentes que se julgam exonerados
de qualquer obrigação para com a fé, contanto que participem do oficio de
adoração a Deus, no fim de cada semana. Quem poderia prever-lhe as mudanças benéficas,
desde que pudesse receber outro tipo de assistência?
Clarindo e Leonel registraram-lhe as ponderações como
se se vissem apunhalados no âmago, tal a expressão de revolta que lhes assomou
ao olhar coruscante.
– No entanto, ele e o pai são nossos devedores...
Roubaram-nos, assassinaram-nos... – exclamou Leonel com a inflexão da criança
voluntariosa e inteligente que se vê contrariada em seus caprichos.
– E que desejam vocês que eles façam? – acrescentou o
Assistente, sem se perturbar.
– Hão de pagar! . . . Pagar!... – bramiu Clarindo,
cerrando os punhos.
Silas sorriu e obtemperou
– Sim, pagar é o verbo próprio. . . Contudo, como pode
o devedor resgatar-se, quando o credor lhe subtrai todas as possibilidades de
solver os débitos? Que a nós mesmos cabe sanar os males de que somos autores,
não padece qualquer dúvida... Entretanto, se nos compete retificar hoje uma
estrada que ontem desorganizamos, como proceder se nos decepam agora as mãos? O
próprio Cristo aconselhou: – “Ajudai aos vossos inimigos.”[1]
Muitas vezes, penso que semelhante afirmativa, corretamente interpretada, quer
assim dizer: ajudai aos vossos inimigos para que possam pagar as dívidas em que
se emaranharam, restaurando o equilíbrio da vida, no qual tanto eles quanto vós
sereis beneficiados pela paz.
Via-se que o Assistente, com a simpatia conquistada na
véspera e com a argumentação despretensiosa e límpida, lograra inequívoca
superioridade moral sobre o ânimo dos obsessores de sentimento enrijecido.
Ainda assim, Leonel perguntou a medo:
– Que considerações são essas? será você algum padre
disfarçado? intentará, porventura, a nossa modificação?
– Engana-se, meu amigo – informou o Assistente –; se
algo procuro, em nossa comunhão fraterna, é a minha própria renovação.
E talvez porque longa pausa se fez sentir em nosso
grupo, Silas continuou:
– Pela sedução do dinheiro, também caí na última
passagem pela Terra. A paixão da posse governava-me todos os ideais... A fascinação
pelo ouro tomou-me o ser de tal modo que, apesar de ter recebido o título de
médico numa universidade venerável, fugi ao exercício da profissão para vigiar
os movimentos de meu velho pai, a fim de que nem ele mesmo viesse a dispor, com
largueza, dos bens de nossa casa. O apego às nossas propriedades e aos nossos
haveres transformou-me num réprobo do paraíso familiar, convertendo-me, ainda,
num verdugo intratável, naturalmente odiado por todos os que viviam em
subalternidade no vasto círculo de minha temporária dominação... Para amontoar
moedas e multiplicar lucros fáceis, comecei pela crueldade e acabei nas malhas
do crime... Abominei a amizade, desprezei os fracos e os pobres e, no temor de
perder a fortuna cuja posse total ambicionava, não hesitei adotar a delinquência
como sócia infernal de meu terrível caminho...
Ante as palavras do Assistente, enorme surpresa me
tomara de improviso.
Estaria Silas reportando-se à verdade crua ou se utilizava
naquela hora de recursos extremos, incriminando indevidamente a si próprio,
para regenerar os carrascos que nos ouviam?
De qualquer modo, eu e Hilário havíamos prometido não
lhe comprometer a tarefa e, por isso, tacitamente, nos limitávamos a escutá-lo
com atenção.
Sentindo, decerto, que Leonel e Clarindo se mostravam
um tanto comovidos, dando ensejo à assimilação de pensamentos novos, Silas
convidou-nos a todos à retirada do ambiente.
Pretendia dizer-nos algo de sua experiência – falou
ele –, mas preferia conversar conosco ante o altar abençoado da noite, a fim de
que a sua memória pudesse evocar tranquilamente os fatos que buscaria relatar.
Lá fora, as constelações resplendiam, como lares
pendentes da Criação, e o vento perfumado corria, célere, como quem se propunha
transportar-nos a oração ou a palavra para a Glória do Céu. Incapaz de penetrar
o verdadeiro sentido da inesperada atitude que o Assistente vinha de assumir,
notei-o efetivamente emocionado, qual se fixasse os olhos da alma em painéis
distantes.
Clarindo e Leonel, naturalmente dominados pela
simpatia a se lhe irradiar do semblante, observavam-no, submissos.
E Silas começou em voz pausada:
– Tanto quanto posso abranger com a minha memória
presente, lembro-me de que, em minha última viagem pelos domínios da carne,
desde a meninice, me entreguei à paixão pelo dinheiro, o que hoje me confere a
certeza de que, por muitas e muitas vezes, fui usurário terrível entre os
homens da Terra. Hoje sei, por informações de instrutores abnegados, que, como
de outras ocasiões, renasci na derradeira existência, num lar bafejado por
grande fortuna, a fim de sofrer a tentação do ouro farto e vencê-la, a golpes
de vontade firme, na lavoura incessante do amor fraterno, caindo, porém,
lamentavelmente, por minha infelicidade. Era eu o filho único de um homem probo
que herdara dos avoengos consideráveis bens. Meu pai era um advogado correto
que, por excesso de conforto, não se dedicava aos misteres da profissão, mas, profundamente
estudioso, vivia rodeado de livros raros, entre obrigações sociais, que, de
alguma sorte, lhe subtraiam a personalidade às cogitações da fé. Minha mãe,
porém, era católica romana, de pensamento fervoroso e digno, e, embora sem
descer conosco a qualquer disputa na esfera devocional, tentava incutir-nos o
dever da beneficência. Recordo-me, com tardio arrependimento, dos reiterados
convites que nos dirigia, bondosa, para que lhe palmilhássemos as tarefas de
caridade cristã, convites esses que meu pai e eu recusávamos, sem discrepância,
encastelados em nossa irreverência enfatuada e risonha. Minha genitora cedo
percebeu que meu pobre espírito trazia consigo o azinhavre da usura e,
reconhecendo que lhe seria extremamente difícil colaborar na renovação íntima
de meu pai, homem já feito e desde a infância habituado à dominação financeira,
concentrava em mim seus propósitos de elevação. Para isso, buscou estimular-me
ao gosto pelos estudos de medicina, alegando que, ao lado do sofrimento humano,
poderia eu encontrar as melhores oportunidades de auxílio ao próximo,
tornando-me agradável a Deus, ainda mesmo que não me fosse possível entesourar
os recursos da fé. Intimamente eu escarnecia das sagradas esperanças de quem me
era a criatura mais cara ao espírito; contudo, sem poder resistir-lhe ao cerco afetivo,
consagrei-me à carreira médica, muito mais interessado em explorar os enfermos
ricos, cujos agravos do corpo, indiscutivelmente, me facultariam amplas
vantagens materiais. Entretanto, em vésperas da vitória estudantil esperada,
minha mãe, relativamente moça, despediu-se da experiência física, vitimada por
um acidente de angina. Nossa dor foi enorme. Recebi meu diploma de medicina,
qual se me fora ele detestada recordação, e, não obstante os estímulos da
bondade paterna, não cheguei a ingressar na prática da profissão conquistada.
Recolhi-me à intimidade doméstica, de que me ausentava tão-somente para as
estações de entretenimento e repouso, então mais que nunca chafurdado na
sovinice, porquanto acompanhei o inventário de minha mãe, com vigilância tão
rigorosa que as minhas estranhas atitudes chegaram a surpreender meu próprio
pai, egoísta e displicente, mas nunca avarento quanto eu. Compreendi que a
fortuna herdada me situava, para meu infortúnio moral, a cavaleiro de qualquer
necessidade da vida física, por largos anos, desde que não me confiasse à dissipação...
Ainda assim, quando vi meu genitor inclinado às segundas núpcias, quase aos
sessenta de idade, fiz quanto pude, indiretamente, para dissuadi-lo,
afastando-o de tal intento. Ele, todavia, era um homem resoluto nas decisões e
desposou Aída, uma jovem da minha idade, que mal se avizinhava dos trinta anos...
Recebi a madrasta como intrusa em nosso campo doméstico, e, tomando-a por
aventureira comum, à caça de fortuna fácil, jurei vingar-me. Apesar das
carinhosas requisições do casal e não obstante o tratamento gentil que a pobre
moça me dispensava, exibia sempre um pretexto para fugir-lhe à convivência. O
novo matrimônio, no entanto, passou a exigir do esposo mais dilatados sacrifícios
no mundo social de que Aída não pretendia afastar-se, e foi assim que, ao
término de alguns meses, meu genitor era obrigado a procurar o socorro médico,
recolhendo-se, então, a necessário repouso. Acompanhava-lhe a decadência
orgânica, tomado de vivas apreensões. Não era a saúde paterna que me feria a
imaginação, mas sim a extensa reserva financeira de nossa casa. Na hipótese do
súbito falecimento do homem que me trouxera à existência, de modo algum me
resignaria a partilhar a herança com a mulher que, aos meus olhos,
indebitamente ocupava o espaço de minha mãe.
O Assistente fez longa pausa, enquanto lhe fixávamos o
semblante melancólico. De mim mesmo, atônito, diante do que me era dado ouvir,
indagava, no intimo, se tudo aquilo de fato se passara... Fora Silas realmente
o homem a quem se reportava ou compunha ele aquela história para alterar o
ânimo dos perseguidores?
Contudo, não me foi possível desfechar qualquer
interrogação, porquanto o nosso amigo, como que desejoso de castigar-se com a dolorosa
confissão, prosseguiu, pormenorizando:
– Passei a arquitetar planos delituosos, quanto à
melhor maneira de alijar Aída de qualquer possibilidade de ingresso futuro ao
nosso patrimônio, sem melindrar meu pai doente... E nos projetos criminosos que
me visitavam a cabeça, a própria morte da madrasta comparecia como solução.
Entretanto, como suprimi-la sem causar maior sofrimento ao enfermo que eu
desejava conservar?... Não seria aconselhável desmoralizá-la, antes de tudo,
aos olhos dele, para que não padecesse qualquer saudade da mulher, condenada
por mim à desvalia? Tramava no silêncio e na sombra, quando a ocasião esperada
veio ao meu encontro... Convidado a comparecer com a esposa numa festividade
pública, meu pai chamou-me e insistiu para que eu acompanhasse Aída,
representando-lhe a autoridade . . . Pela primeira vez, acedi com prazer... Pretendia
conhecer-lhe agora, de mais perto, as afeições... Funestos propósitos
nasciam-me no crânio... Desse modo, durante alegre ágape, tomei contato com
Armando, primo de minha madrasta e que a cortejara em solteira. Armando era um
rapaz pouco mais velho que eu, perdulário e fanfarrão, que dividia o tempo
entre mulheres e taças espumantes, a quem contrariamente aos meus hábitos,
ofereci premeditada comunhão afetiva... Tanto quanto possível, dominando
moralmente o ânimo de meu pai, desde então o associei ao nosso campo doméstico,
favorecendo-lhe o mais amplo retorno à intimidade com a criatura de quem se havia
enamorado, anos antes. A praia, o teatro, o cinema, bem como passeios de
variados matizes, eram agora os pontos costumeiros de nossa presença, nos quais
intencionalmente eu atirava os dois primos nos braços um do outro... Aída não
me percebeu a manobra e, embora resistisse, por mais de um ano, à galanteria do
companheiro, acabou por ceder à constante ofensiva dele... Fingi desconhecer-lhes
as relações até que eu pudesse conduzir meu pai ao testemunho direto dos
acontecimentos... Inventava jogos e distrações para reter o sedutor em nossa
casa... Captei-lhe a confiança absoluta, de modo a usá-lo como peça importante
em meu criminoso ardil e, certa noite, em que, cauteloso, aparentei completa ausência
de nosso templo familiar, sabendo os amantes segregados em determinado aposento
contíguo ao meu, procurei meu pai em sua dependência de enfermo e,
mascarando-me com intensa dignidade ofendida, chamei-o a brios, numa exposição sintética
dos fatos... Lívido e trêmulo, o doente exigiu provas e nada mais fiz que
conduzi-lo, cambaleante, até à porta do quarto, cujo fecho eu próprio deixara
enfraquecido... Bastou um empurrão mais forte e meu genitor, desolado,
encontrou o flagrante que eu desejava... Armando, cínico, não obstante o
desapontamento, afastou-se, lépido, ciente de que não poderia esperar qualquer golpe
grave de um sexagenário abatido... Minha madrasta, porém, profundamente ferida
em seu amor próprio, dirigiu ao velho esposo acusações humilhantes, procurando
os seus aposentos particulares, numa explosão de amargura. Completando a obra
terrível a que me devotara, mostrei-me mais carinhoso para com o enfermo, intimamente
aniquilado... Duas semanas arrastaram-se pesadas para a nossa equipe
familiar... Enquanto Aída ocupava o leito, assistida por dois médicos de nossa
confiança, que nem de longe nos conheciam a tragédia oculta, afagava meu pai
com lamentações e sugestões indiretas para que os bens de nossa casa fossem, na
maioria, guardados em meu nome, já que o segundo matrimônio não poderia
desfazer-se, perante as autoridades legais. Prosseguia em minha faina
delituosa, quando minha madrasta apareceu morta... Os clínicos de nossa amizade
positivaram um envenenamento fulminante e, constrangidos, notificaram a meu pai
tratar-se de um suicídio, decerto motivado pela insofreável neurastenia de que
a doente se via objeto. Meu genitor estava mais sombrio nos aparatosos
funerais, contudo, em meus destruidores propósitos, regozijei-me... Agora,
sim... a fortuna total de nossa casa passaria a pertencer-me... Minha satânica
alegria, porém, durou muito pouco... Desde a morte da segunda mulher, meu pai
acamou-se para não mais se erguer... Debalde, médicos e padres amigos procuraram
oferecer-lhe melhoras e consolações... Ao fim de dois meses, meu pai, que nunca
mais sorriu, entrou em dolorosa agonia, na qual, através de confidência
entrecortada de lágrimas, me confessou haver envenenado Aída, administrando-lhe
violento tóxico no calmante habitual. Isso, no entanto – assegurava-me vencido
–, impunha-lhe também a morte, de vez que não conseguia perdoar a si mesmo,
passando a carregar consigo um fardo de remorso constante e intolerável... Pela
primeira vez, minha consciência doeu fundo. O apego aos bens da carne
arrasava-me a vida... O velho querido morreu nos meus braços, crendo que os meus
soluços de arrependimento fossem pranto de amor. Deixando-lhe o corpo fatigado
na terra fria, tornei a nossa casa solarenga, sentindo-me o mais infortunado
dos seres... O ouro integral do mundo não me garantiria agora o mais leve
consolo. Achava-me sozinho, sozinho e... infinitamente desgraçado. Todos os
recantos e pertences de nossa habitação falavam-me de crime e remorso... Muitas
vezes, a sombra noturna pareceu-me povoada de fantasmas horripilantes a
escarnecerem de minha dor, e, em meio da malta de insensíveis demônios, a
investirem contra mim, tinha a ideia de escutar a voz inconfundível de meu pai,
clamando para minhalma: – “Meu filho! meu filho! recua enquanto é tempo.” Fiz-me
arredio, desconfiado... Em pavorosa crise moral, demandei à Europa, em longa
viagem de recreio, mas o encanto das grandes cidades do Velho Mundo não
conseguiu aliviar-me as chagas interiores. Em toda a parte, a refeição mais
nobre amargava-me na boca e os mais belos espetáculos artísticos deixavam-me
apenas ansiedade e desolação. Regressei ao Brasil, mas não tive coragem de
retomar a intimidade com a nossa antiga residência. Amparado pela afeição de
velho amigo de meu genitor, aceitei-lhe o acolhimento, por alguns dias, até que
minha saúde orgânica me permitisse pensar numa transformação radical da
existência... Embalado pelo carinho familiar daquele amigo, deixei que longos
meses passassem, tentando imerecida fuga mental... até que, numa noite inolvidável
para mim, na qual minha gastralgia se transformara num azorrague de dor, tomei
de um frasco de arsênico na adega de meu anfitrião, acreditando usar o
bicarbonato de sódio que ali deixara na véspera, e o veneno expulsou-me do
corpo, impondo-me sofrimentos terríveis... Qual acontecera à minha madrasta,
que desencarnara em padecimentos atrozes, eu também passei pela morte em
condições análogas... E os amigos que me asilavam no templo doméstico,
desconhecendo o equívoco de que eu fora vítima, admitiram, sem qualquer sombra
de dúvida, que eu buscara no suicídio a extinção das penas morais que me
castigavam a alma de “moço rico e entediado da vida”, segundo a versão a que deram
curso.
Silas relanceou o olhar tristonho sobre nós, como quem
procurava o efeito de suas palavras, e prosseguiu:
– Isso, porém, não bastou para ressarcir minhas
tremendas culpas... Dementado, depois do sepulcro, atravessei meses cruéis de
terror e desequilíbrio, entre os quadros vivos a se me exteriorizarem da mente
algemada às criações de si própria, até que fui socorrido por amigos de meu
pai, que se achava igualmente a caminho da sua recuperação, e, unindo-me a ele,
passei a empenhar todas as minhas energias na preparação do futuro...
Transcorridos alguns instantes de pesado silêncio,
concluiu:
– Como veem, a fascinação pelo ouro foi o motivo de
minha perda. Tenho necessidade de grande esforço no bem e de fé vigorosa para
não cair outra vez, porquanto é indispensável me consagre a nova experiência
entre os homens...
Leonel e Clarindo não se achavam mais surpreendidos
que eu e Hilário, habituados a encontrar, em Silas, um admirável companheiro, aparentemente
sem aflição e sem problemas.
Foi Leonel quem rompeu a pausa, perguntando ao
Assistente que emudecera, qual se fora subjugado pela força das próprias reminiscências:
– Voltará, então, para a carne, assim tão breve?
– Oh! quem me dera a ventura de regressar tão
apressadamente quanto possível!... – suspirou o chefe de nossa expedição, algo ansioso.
– O devedor está inelutavelmente ligado ao interesse dos credores... Assim,
antes de tudo, é imprescindível venha a encontrar minha madrasta, no vasto país
de sombra em que nos achamos, para encetar a difícil tarefa de minha liberação
moral.
– Como assim? – perguntei, emocionado.
– Sim, meu amigo – falou Silas, abraçando-me –, meu
caso não aproveita simplesmente a Clarindo e Leonel, que procuram a justiça
pelas próprias mãos, o que, muitas vezes, apenas significa violência e
crueldade, mas também a Hilário e a você que estudam presentemente a lei do
carma, ou seja, da ação e reação... Aqui somos impelidos a recordar novamente a
lição do Senhor: “ajudai aos vossos inimigos”, porque, sem que eu mesmo auxilie
a mulher em cujo coração criei uma importante adversária de minha paz, não
posso receber-lhe o auxílio fraterno, sem o qual não reconquistarei minha
serenidade... Vali-me da fraqueza de Aída para arrojá-la ao despenhadeiro da
perturbação, fazendo-a mais frágil do que já era em si mesma... Agora, eu e meu
pai, que lhe complicamos o caminho, somos naturalmente constrangidos a buscá-la,
soerguê-la, ampará-la e restituir-lhe o equilíbrio relativo na Terra, para que
venhamos a solver, pelo menos em parte, a nossa imensa dívida...
– Seu pai? referiu-se a seu pai? – inquiriu Hilário,
afoito.
– Sim, como não? – retrucou o Assistente – meu pai e eu,
assistidos por minha mãe, hoje nossa benfeitora nas Esferas Mais Altas, estamos
associados no mesmo empreendimento – nossa própria regeneração moral, em busca
do levantamento de Aída –, sem o que não conseguiremos desintegrar o visco
envenenado do remorso que nos aprisiona o campo mental nas faixas inferiores da
vida terrestre. É assim que nos cabe reencontrá-la, a beneficio de nós
mesmos... Tão logo a Divina Misericórdia nos permita semelhante felicidade, meu
genitor, envolvido no amor e na renúncia de minha mãe que, com ele, retornará
às lides da carne, vestir-se-á de nova expressão corpórea no plano das formas
físicas e, ambos, na mocidade terrena, retomando os laços humanos do casamento,
recolher-nos-ão por filhos abençoados... Aída e eu seremos irmãos nas teias
consanguíneas... Consoante nossas aspirações que o Céu protegerá, à face da
Magnanimidade Divina, serei novamente médico no futuro, ao preço de imenso
esforço, para consagrar-me à beneficência, nela recuperando minhas valiosas oportunidades
perdidas... Minha madrasta, que, por certo, viverá sofrendo deplorável
intoxicação da alma, nos tenebrosos abismos, será socorrida em momento oportuno
e, não obstante o tempo longo de assistência que nos reclamará neste plano, em necessário
refazimento, sem dúvida renascerá em franzino corpo físico, junto de nós, de
maneira a sanar as difíceis psicoses que estará adquirindo sob o domínio das
trevas, psicoses que lhe marcarão a existência na carne, sob a forma de
estranhas enfermidades mentais... Ser-lhe-ei, assim, não apenas o irmão do lar,
mas também o enfermeiro e o amigo, o companheiro e o médico, pagando em
sacrifício e boa-vontade, afeto e carinho, o equilíbrio e a felicidade que lhe
furtei...
A confissão do Assistente valia por todo um compêndio
vivo de experiências preciosas, e, talvez por isso mesmo, entráramos todos em
grave meditação. Hilário, contudo, como quem não desejava perder o fio do
ensinamento, dirigiu-se ao nosso amigo, considerando:
– Meu caro, disse você estar aguardando, em comunhão
com o genitor, a alegria de reencontrar a madrasta... Como entender-lhe a
alegação? porventura, com o seu grau de conhecimento, sofre alguma dificuldade
para saber-lhe a moradia?
– Sim, sim... – confirmou o Assistente, tristonho.
– E os benfeitores espirituais que atualmente lhes
guiam a senda? não conhecerão eles o paradeiro dela, orientando-lhes os movimentos
no objetivo a alcançar?
– Inegavelmente – ponderou Silas, bondoso – nossos
instrutores não padecem a ignorância que me caracteriza no assunto...
Entretanto, qual ocorre entre os homens, também aqui o
professor não pode chamar a si os deveres do aluno, sob pena de subtrair-lhe o
mérito da lição. Na Terra, por muito nos amem, nossas mães não nos substituem
no cárcere, quando devamos expiar algum crime, e nossos melhores amigos não
podem avocar para si, em nome da amizade, o direito de sofrer a mutilação que a
nossa imprudência nos tenha infligido ao próprio corpo. Sem dúvida as bênçãos
de amor dos nossos dirigentes hão trazido à minhalma inapreciáveis recursos...
Conferem-me luz interior para que eu sinta e reconheça minhas fraquezas e
auxiliam-me a renovação, a fim de que eu possa demandar, com mais decisão e
facilidade, a meta que me proponho atingir... mas, em verdade, o serviço de meu
próprio resgate é pessoal e intransferível...
Leonel e Clarindo ouviam-no, boquiabertos.
Falando de si mesmo, o Assistente, sem lhes ferir o
amor-próprio, trabalhava indiretamente, para que se entregassem ao reajuste. E,
pela expressão do olhar, via-se que os dois verdugos revelavam agora admirável
mudança íntima.
Hilário refletiu alguns instantes e voltou a
considerar:
– Mas todo esse drama deve estar vinculado a causas do
pretérito...
– Sim, decerto – confirmou o Assistente –, mas, em
nossa atormentada região, não há tempo mental para qualquer prodígio da
memória. Achamo-nos presos à recordação das causas próximas de nossas
angústias, dificultando-se-nos a possibilidade de penetrar o domínio das causas
remotas, porquanto a situação de nosso espírito é a de um doente grave,
necessitado de intervenção urgente, a favor do reajuste. O inferno, a
exprimir-se nas zonas inferiores da Terra, está repleto de almas que,
dilaceradas e sofredoras, se levantam, clamando pelo socorro da Providência
Divina contra os males que geraram para si mesmas, e a Providência Divina lhes
permite a ventura de trabalhar, com os dardos da culpa e do arrependimento a
lhes castigarem o coração, em benefício das suas vítimas e dos irmãos, cujas
faltas se afinem com os delitos que cometeram, para que se rearmonizem, tão
apressadamente quanto possível, com o Infinito Amor e com a Perfeita Justiça da
Lei... Paguemos nossas dívidas, que respondem por sombras espessas em nossas
almas, e o espelho de nossa mente, onde estivermos, refletirá a luz do Céu, a
pátria da Divina Lembrança!...
Compreendemos que Silas auxiliava Clarindo e Leonel,
identificando-os como irmãos de luta e aprendizado, no que, indiscutivelmente, ampliaria
os próprios méritos.
Muitas inquirições explodiam, em pensamento, no meu
acanhado mundo íntimo... Quem lhe seria o pai amigo? onde viveria sua abnegada
genitora? esperava despender, ainda, longo tempo na procura da madrasta
infeliz?... Entretanto, a grandeza espiritual do Assistente não nos favoreceria
qualquer pergunta indiscreta.
Apenas tive coragem para considerar, respeitoso:
– Oh! meu Deus, quanto tempo gastamos para refazer, às
vezes, a inconsequência de um simples minuto!
– Você tem razão, André – comentou Silas, generoso –,
a lei é de ação e reação... A ação do mal pode ser rápida, mas ninguém sabe
quanto tempo exigirá o serviço da reação, indispensável ao restabelecimento da
harmonia soberana da vida, quebrada por nossas atitudes contrárias ao bem...
E, sorrindo:
– Por isso mesmo, recomendava Jesus às criaturas
encarnadas: “reconcilia-te depressa com o teu adversário, enquanto te encontras
a caminho com ele...” É que Espírito algum penetrará o Céu sem a paz de
consciência, e, se é mais fácil apagar as nossas querelas e retificar nossos
desacertos, enquanto estagiamos no mesmo caminho palmilhado por nossas vítimas
na Terra, é muito difícil providenciar a solução de nossos criminosos enigmas, quando
já nos achamos mergulhados nos nevoeiros infernais.
A ponderação era cabível e justa.
Não nos foi possível, porém, prosseguir a conversa.
Leonel, cuja impassibilidade reconhecíamos, com grande
surpresa para nós tinha os olhos umedecidos...
Silas ergueu os olhos para o Alto, agradecendo a
bênção da transformação que se esboçava e recolheu-o em seus braços.
O desditoso irmão de Clarindo queria falar...
Percebemos que tencionava referir-se à morte de Alzira, no lago, mas o
Assistente prometeu-lhe que voltaríamos na noite seguinte.
Logo após, voltávamos, mas nem Hilário nem eu nos
animamos a conversar com o denodado companheiro, que entrara, melancólico, em
expressivo silêncio.
QUESTÕES DE ESTUDO
1)COMENTAR SOBRE A MÁXIMA: "AJUDAI AOS VOSSOS
INIMIGOS".
2)FAÇA UM PARALELO, RESPECTIVAMENTE, ENTRE AS AÇÕES E
AS REAÇÕES COMENTADAS NO CAPÍTULO. EM ESPECIAL SOBRE A HISTÓRIA DE SILAS.
3)O QUE DIZER DA MORTE CORPÓREA DE SILAS SER MUITO
PARECIDA COM A DA MADRASTA?
4)SILAS COMETEU GRANDES ERROS EM SUA EXISTÊNCIA
PASSADA,NO ENTANTO, OCUPA UM CARGO DE RESPONSABILIDADE DENTRO DA MANSÃO. O QUÊ
ISSO SIGNIFICA?
5)EXPLIQUE PORQUE AÍDA NÃO RENASCERÁ EM UM CORPO
SADIO.
6)PODERÍAMOS AFIRMAR, PELO RELATO, QUE SILAS SOFRIA
SÉRIO PROCESSO OBSESSIVO?
[1] André Luiz põe nos lábios de sua personagem uma síntese dos
v. 27 e 28 do cap. 6 de Lucas, para ser mais facilmente compreendido por aqueles
Espíritos cheios de ódio, aos quais repugnaria o verbo "amar". Eles
se rebelariam diante do texto completo. Seria inabilidade falar em "amar"
naquele momento; mas "ajudar" a pagar foi bem aceito, porque eles
queriam receber. (Nota da Editora.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário