Capítulo 14 - Em Serviço Espiritual
Distanciávamo-nos da
instituição, quando o marido desencarnado de Dona Celina, cuja presença
assinaláramos no decurso da reunião, se aproximou de nós. Demonstrava conhecer
nosso orientador, porque estacou ao nosso lado e exclamou:
— Meu caro Assistente,
por obséquio... Áulus apresentou-nos o novo amigo: É o nosso irmão Abelardo
Martins. Foi o esposo de nossa cooperadora Celina e vem-se adaptando aos nossos
regimes de ação.
Via-se, de pronto, que
Abelardo não era uma entidade de escol. As maneiras e a voz traíam-lhe a
condição espiritual de criatura ainda profundamente arraigada aos hábitos
terrestres.
— Meu caro Assistente —
continuou, inquieto —, venho rogar-lhe auxílio em favor de Libório. O socorro
do grupo melhorou-lhe as disposições, mas agora é a mulher que piorou,
perseguindo-o...
— Conte conosco —
aderiu o orientador, de boa-vontade —, contudo, é importante que Celina nos
ajude.
E, afagando-lhe os
ombros, concluiu:
— Volte à companheira
e, tão logo se desligue Celina do corpo, pela influência do sono, traga-a em
sua companhia, a fim de que possamos seguir todos juntos. Aguardá-los-emos no
jardim próximo.
O interlocutor
afastou-se, contente, enquanto penetrávamos enorme praça arborizada.
Detivemo-nos, à espera dos companheiros, e, aproveitando os minutos, Áulus se
reportou à solicitação recebida. Abelardo interessava-se por Libório dos
Santos, o primeiro comunicante daquela noite, que viramos amparado, por
intermédio de Dona Eugênia.
E, alongando
explicações, informou-nos que o esposo de Dona Celina vagueara por muito tempo,
em desespero. Na experiência física, fora um homem temperamental e não se resignara,
de imediato, às imposições da morte. Atrabiliário e voluntarioso, desencarnara
muito cedo, em razão dos excessos que lhe minaram a força orgânica. Tentou, em
vão, obsidiar a esposa, cujo concurso reclamava qual se lhe fora simples serva.
Reconhecendo-se incapaz de vampirizá-la, excursionou, alguns anos, no domínio
das sombras, entre Espíritos rebelados e irreverentes, até que as orações da
companheira, coadjuvadas pela intercessão de muitos amigos, conseguiram
demovê-lo. Curvara-se, enfim, à evidência dos fatos. Reconheceu a impropriedade
da intemperança mental em que se comprazia e, depois de convenientemente
preparado pela assistência do grupo de amigos que acabávamos de deixar, foi
admitido numa organização socorrista, em que passou a servir como vigilante de
irmãos desequilibrados.
Tão logo o Assistente
completou a rápida biografia, Hilário considerou, curioso:
— O contato com
Abelardo suscita indagações interessantes... Continuará ele, porventura, em
comunhão com a esposa?
— Sim — elucidou o orientador
—, o amor entre ambos tem profundas raízes no pretérito.
— Apesar da diferença
em que se exprimem?
— Por que não? Acaso, o
Pai Celestial deixa de amar-nos, não obstante as falhas com que pautamos,
ainda, a vida que nos é própria?
— Realmente — concordou
meu colega, um tanto desapontado —, este argumento é indiscutível. Entretanto,
Abelardo religou-se à mulher?
— Perfeitamente. Nela
encontra valioso incentivo ao trabalho de auto recuperação em que estagia.
— Mas, na posição de
Espírito desencarnado, chega a partilhar-lhe o templo doméstico?
— Tanto quanto lhe é
possível. Por haver descido consideravelmente à indisciplina e à perturbação,
ainda sofre as consequências desagradáveis do desequilíbrio a que se rendeu e,
por esse motivo, o lar terreno, com a ternura da esposa, é o maior paraíso que
poderá receber por enquanto. Diariamente se entrega ao serviço árduo, na obra
assistencial em favor de companheiros ensandecidos, mas descansa, sempre que
oportuno, no jardim familiar, ao lado da companheira. Uma vez por semana,
acompanha-lhe o culto intimo de oração, é-lhe firme associado nas tarefas
mediúnicas e, todas as noites em que se sentem favorecidos pelas
circunstâncias, consagram-se ambos ao trabalho de auxílio aos doentes. Não
foram apenas cônjuges, conforme as disposições da carne. São infinitamente
amigos e Abelardo agora procura aproveitar o tempo, a benefício do seu
reajuste, sonhando receber a esposa com novos títulos de elevação, quando
Celina for novamente trazida à pátria espiritual.
— Isso, porém, é comum?
A separação dos casais é apenas imaginária?
— Um caso não faz regra
— ponderou o Assistente bem-humorado. — Onde não prevalecem as afinidades do
sentimento, o matrimônio terrestre é um serviço redentor e nada mais. Na
maioria das situações, a morte do corpo somente ratifica uma separação que já
existia na experiência vulgar. Nesses casos, o cônjuge que abandona o
envoltório físico se retira da prova a que se submeteu, à maneira do devedor
que atingiu a paz do resgate. Todavia, quando os laços da alma sobrepairam às
emoções da jornada humana, ainda mesmo que surja o segundo casamento para o
cônjuge que se demora no mundo, a comunhão espiritual continua, sublime, em
doce e constante permuta de vibrações e pensamentos.
Hilário refletiu alguns
momentos e conjecturou:
— A travessia pelo
túmulo impõe efetivamente ao Espírito singulares modificações... Cada viajor em
sua estrada, cada coração com seu problema...
— Bem-aventurados os
que se renovam para o bem! — exclamou Áulus, satisfeito. — O verdadeiro amor é
a sublimação em marcha, através da renúncia. Quem não puder ceder, a favor da
alegria da criatura amada, sem dúvida saberá querer com entusiasmo e carinho,
mas não saberá coroar-se com a glória do amor puro. Depois da morte, habitualmente
aprendemos, no sacrifício dos próprios sonhos, a ciência de amar, não segundo
nossos desejos, mas de conformidade com a Lei do Senhor: mães obrigadas a
entregar os filhinhos a provas de que necessitam, pais que se veem compelidos a
renovar projetos de proteção à família, esposas constrangidas a entregar os
maridos a outras almas irmãs, esposos que são impelidos a aceitar a colaboração
das segundas núpcias, no lar de que foram desalojados... Tudo isso encontramos
na vizinhança da Terra. A morte é uma intimação ao entendimento fraternal... E
quando lhe não aceitamos o desafio, o sofrimento é o nosso quinhão...
E, com largo sorriso,
ajuntou:
— Quando o amor não
sabe dividir-se, a felicidade não consegue multiplicar-se.
A conversação
prosseguia valiosa e animada, quando Abelardo e Celina chegaram até nós. Vinham
reconfortados, felizes. Em companhia da esposa, o novo amigo parecia mais leve
e radiante, como se lhe absorvesse a vitalidade e a alegria.
Notei que Hilário, pela
expressão fisionômica, trazia consigo um novo mundo de indagações a
exteriorizar. Contudo, Áulus advertiu:
— Sigamos! É necessário
agir com presteza.
A breve tempo,
penetramos nebulosa região, dentro da noite. Os astros desapareceram a nossos
olhos. Tive a impressão de que o piche gaseificado era o elemento preponderante
naquele ambiente. Em derredor, proliferavam soluços e imprecações, mas a
pequenina lâmpada que Abelardo agora empunhava, auxiliando-nos, não nos
permitia enxergar senão o trilho estreito que nos cabia percorrer.
Findos alguns minutos
de marcha, atingimos uma construção mal iluminada, em que vários enfermos se
demoravam, sob a assistência de enfermeiros atenciosos.
Entramos.
Áulus explicou que
estávamos ali diante de um hospital de emergência, dos muitos que se estendem
nas regiões purgatoriais. Tudo pobreza, necessidade, sofrimento...
— Este é o meu templo
atual de trabalho — disse-nos Abelardo, orgulhoso de ser ali uma peça
importante na máquina de serviço.
O irmão Justino,
diretor da instituição, veio até nós e cumprimentou-nos. Pediu escusas por lhe
não ser possível acompanhar-nos. A casa jazia repleta de psicopatas
desencarnados e não poderia, dessa forma, deter-se naquele momento. Deu-nos,
porém, permissão para agir com plena liberdade.
A desarmonia era
efetivamente tão grande no local que não pude sopitar meu espanto. Como cogitar
de reajuste num meio atormentado quanto aquele?
O Assistente, contudo,
amparou-me, aclarando:
— Importa reconhecer
que este pouso é um refúgio para desesperados. Segundo a reação que apresentam,
são conduzidos, de pronto, a estabelecimentos de recuperação positiva ou
regressam às linhas de aflição de que procedem. Aqui apenas atravessam pequeno
estágio de recuperação.
Alcançáramos o leito
simples em que Libório, de olhar esgazeado, se mostrava distante de qualquer
interesse pela nossa presença. Enxergava-nos, impassível. Exibia o semblante
dos loucos, quando transfigurados por ocultas flagelações. Um dos guardas veio
até nós e comunicou a Abelardo que o doente trazido à internação denotava
crescente angústia.
Áulus auscultou-o,
paternalmente, e, em seguida, informou:
— O pensamento da irmã
encarnada que o nosso amigo vampiriza está presente nele, atormentando-o.
Acham-se ambos sintonizados na mesma onda. É um caso de perseguição recíproca.
Os benefícios recolhidos no grupo estão agora eclipsados pelas sugestões
arremessadas de longe.
— Temos então aqui —
aleguei — um símile perfeito do que verificamos comumente na Terra, nos setores
da mediunidade torturada. Médiuns existem que, aliviados dos vexames que
recebem por parte de entidades inferiores, depressa como que lhes reclamam a
presença, religando-se a elas automaticamente, embora o nosso mais sadio
propósito de libertá-los.
— Sim — aprovou o orientador
—, enquanto não lhes modificamos as disposições espirituais, favorecendo-lhes a
criação de novos pensamentos, jazem no regime da escravidão mútua, em que
obsessores e obsidiados se nutrem das emanações uns dos outros. Temem a
separação, pelos hábitos cristalizados em que se associam, segundo os
princípios da afinidade, e daí surgem os impedimentos para a dupla recuperação
que lhes desejamos.
O doente fizera-se mais
angustiado, mais pálido. Parecia registrar uma tempestade interior, pavorosa e
incoercível.
— Tudo indica a
vizinhança da irmã que se lhe apoderou da mente. Nosso companheiro se revela
mais dominado, mais aflito...
Mal acabara o
orientador de formular o seu prognóstico e a pobre mulher, desligada do corpo
físico pela atuação do sono, apareceu à nossa frente, reclamando feroz:
— Libório! Libório! Por
que te ausentaste? Não me abandones! Regressemos para nossa casa! Atende,
atende!...
— Que vemos? — exclamou
Hilário, intrigado.
— Não será esta a
criatura que o serviço desta noite pretende isolar das más influências?
E porque o orientador
respondesse de modo afirmativo, meu colega continuou:
— Deus de bondade! Mas
não está ela interessada no reajustamento da própria saúde? Não roga socorro à
instituição que frequenta?
— Isso é o que ela
julga querer — explicou Áulus, cuidadoso —, entretanto, no íntimo, alimenta-se
com os fluidos enfermiços do companheiro desencarnado e apega-se a ele,
instintivamente. Milhares de pessoas são assim. Registram doenças de variados
matizes e com elas se adaptam para mais segura acomodação com o menor esforço.
Dizem-se prejudicadas e inquietas, todavia, quando se lhes subtrai a moléstia
de que se fazem portadoras, sentem-se vazias e padecentes, provocando sintomas
e impressões com que evocam as enfermidades a se exprimirem, de novo, em
diferentes manifestações, auxiliando-as a cultivar a posição de vítimas, na
qual se comprazem.
―Isso acontece na
maioria dos fenômenos de obsessão. Encarnados e desencarnados se prendem uns
aos outros, sob vigorosa fascinação mútua, até que o centro de vida mental se
lhes altere. É por esse motivo que, em muitas ocasiões, as dores maiores são
chamadas a funcionar sobre as dores menores, com o objetivo de acordar as almas
viciadas nesse gênero de trocas inferiores.
A esse tempo, a
recém-chegada conseguira abeirar-se mais intimamente de Libório, que passou a
demonstrar visível satisfação. Sorria ele agora à maneira de uma criança
contente.
Identificando, porém, a
presença de Dona Celina, a infeliz bradou, colérica:
— Quem é esta mulher?
Dize! Dize!...
Nossa abnegada amiga
avançou para ela com simplicidade e implorou:
— Minha irmã,
acalme-se! Libório está fatigado, enfermo! Ajudemo-lo a repousar!...
A interlocutora não lhe
suportou o olhar doce e benigno e, longe de reconhecer a prestimosa médium do
grupo a que se associara, enceguecida de ciúme, gritou para o enfermo palavras
amargas, que não seria licito reproduzir, e abandonou o recinto, em desabalada
carreira. Libório mostrou evidente contrariedade.
Áulus, contudo,
aplicou-lhe passes, restituindo-lhe a calma. Em seguida, o Assistente nos
disse, amorável:
— Como vemos, a Bondade
Divina é tão grande que até os nossos sentimentos menos dignos são aproveitados
em nossa própria defesa. O despeito da visitante, encontrando Celina junto do
enfermo, dar-nos-á tréguas valiosas, de vez que teremos algum tempo para
auxiliá-lo nas reflexões necessárias. Quando acordar no corpo carnal, pela
manhã, nossa pobre amiga lembrar-se-á vagamente de haver sonhado com Libório,
ao lado de uma companheira, pintando um quadro de impressões a seu bel-prazer,
porquanto cada mente vê nos outros aquilo que traz em si mesma.
Abelardo estava
satisfeito. Acariciava o doente, antevendo-lhe as melhoras. Hilário,
semi-espantado, considerou:
— O que me assombra é
reconhecer o serviço incessante por toda a parte. Na vigília e no sono, na vida
e na morte...
Respondeu Áulus,
sorrindo:
— Sim, a inércia é
simplesmente ilusão e a preguiça é fuga que a Lei pune com as aflições da
retaguarda. Mas, nossa tarefa estava agora cumprida. E, por isso, afastamo-nos.
Daí a minutos,
despedindo-nos, prometeu o Assistente reencontrar-nos, para a continuidade de
nossas observações, na noite seguinte.
Questões iniciais para estudo:
1 . Comente o
que mais lhe chamou a atenção ou lhe
trouxe ensinamento no capítulo? Por que?
2 . Qual a
condição do Espírito após a morte? Há diferenças de comportamento entre um
Espírito encarnado e um desencarnado? Quais? Justifique.
3 . Comente,
explicando, a questão da influência do sono para o espírito encarnado e qual
sua relação com a mediunidade?
4 . Como
podemos entender a comunhão afetiva de um casal, estando cada um em planos
diferentes de vida?
5. Qual a
ligação e/ou a importância de um lar terreno harmonizado para os Espíritos
afins desencarnados?
6 . Como se
dá , se explica e quais as consequências da mediunidade torturada?
7 . Qual a
importância e a função do serviço para o Espírito? Está ele relacionado apenas
à mediunidade?
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